O género do direito e da justiça de família - As desigualdades e violência de género na transformação da lei de família e nas decisões dos Tribunais de Família e Menores |
Resumo:
O Estado ainda é dominado pela ideologia patriarcal, o que se reflecte em todos os seus poderes e estruturas, entre as quais o poder legislativo e judicial: elaboração/produção das leis e sua aplicação através das decisões/práticas dos tribunais e profissionais. Assim, pretendemos estudar os processos de produção do direito de família nos últimos 30 anos, que são complexos, reflectem consensos e dissensos sobre discursos políticos contraditórios e são, simultaneamente, reguladores e emancipadores, consagraram rupturas sucessivas, desde a consagração em 1977 do princípio da igualdade entre géneros, mas mantêm continuidades com a visão patriarcal do Código Civil de 1966. O estudo das rupturas/continuidades permitirá analisar de que modo a lei de família ainda reflecte as desigualdades de género nas relações sociais e familiares. Partindo dos conceitos amplos de desigualdade e de violência de género (toda a violência simbólica, emocional, psíquica, e não só a física que se encontra criminalizada) e da construção desigual das relações sociais de género, procuraremos, apesar da consagração nos Estados modernos do princípio jurídico da igualdade de homens e mulheres, analisar como é que a lei de família se transformou/foi transformada para responder à questão da constitucionalização da igualdade de direitos/igualdade de género (princípio da igualdade, direito ao divórcio, princípio da não discriminação de filhos nascidos fora do casamento, reconhecimento das uniões de facto, consagração do divórcio sem culpa). Pretendemos saber, assim, de que modo esta transformação do direito de família (incluindo todas as relações jurídicas e de facto de família ou parentalidade) se mantém (ou não) patriarcal; publiciza (ou não) a esfera privada; e mantém as desigualdades das relações sociais de género e um status quo regulador ou, na realidade emancipador, fonte de igualdade e de cidadania. Analisada a transformação do direito de família em Portugal, no contexto da transformação verificada nos países europeus, pretendemos estudar como é que os Tribunais e os juízes ponderam e avaliam nas sentenças (designadamente em acções de divórcio litigioso, investigação de paternidade, regulação, inibição e limitação do poder paternal, promoção dos direitos e de crianças em risco e de adopção) a questão da desigualdade género e, especificamente, da violência de género. Assim, este projecto subdivide-se em duas partes, que devem ser estudadas em conjunto: a análise, por um lado, da law in books e, por outro, da law in action. Em primeiro lugar, as rupturas/continuidades da transformação da lei de família em Portugal, de 1974 à actualidade, através das reformas do Código Civil e da legislação de família conexa. O estudo será feito, ainda, através da análise do discurso e da ideologia dos manuais de direito de família que foram (e são) a base do ensino nas faculdades de Direito e no Centro de Estudos Judiciários em Portugal. A análise será aprofundada com o estudo do discurso político-ideológico produzido a propósito destas alterações legais, designadamente nos preâmbulos/exposições de motivos e debates parlamentares publicados/registados desde 1974 até hoje. Em segundo lugar, estudar o modo como a actual lei de família é aplicada pelos tribunais portugueses, através da análise dos discursos jurídico e ideológico com que os juízes fundamentam as suas decisões. O estudo será feito através da análise de conteúdo de uma amostra de decisões do Tribunal de Família e Menores de Lisboa – por ser o maior aglomerado urbano do país e uma cidade onde predominará uma maior laicidade – e do Tribunal de Família e Menores de Braga – um tribunal do norte de Portugal, que abrange população rural e urbana e onde, consensualmente, existe uma grande influência da ideologia da Igreja Católica. Tal estudo facultará uma comparação entre as práticas e culturas locais, admitindo-se como hipótese que as decisões e práticas dos dois Tribunais têm diferenças assinaláveis relativamente à desigualdade e violência de género. Para além do estudo das sentenças, estudaremos, ainda, uma amostra das promoções do Ministério Público nos processos em que intervenha na área da família, nesses dois tribunais, o que possibilitará a avaliação de eventuais dessintonias entre as práticas dos magistrados judiciais e do Ministério Público na aplicação do direito de família. Em suma, a hipótese geral é a de que, apesar da transformação do direito de família nos últimos 30 anos, a lei e a prática judiciária são ainda dominadas, de forma manifesta ou latente, pela ideologia patriarcal ou masculina. Com os resultados do projecto e sua disseminação, poderemos contribuir para uma futura redacção da lei de família, do ensino do direito, da formação de magistrados e advogados e para uma prática judiciária que respeite as políticas de igualdade e não interprete e aplique a lei de família de modo a reproduzir ou a acolher a desigualdade e violência de género. O que contribuirá para uma mais integral cidadania de género.
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