As vulnerabilidades ambientais e os meios de as resolver: Um Green New Deal para Portugal
Ricardo Coelho
A “crise COVID-19” expôs as fragilidades da economia globalizada capitalista em que vivemos. Um sistema alimentar destrutivo abriu o caminho para a proliferação de pandemias zoonóticas (que resultam da transmissão de vírus de animais para humanos), que se podem espalhar rapidamente pelo mundo graças à banalização do transporte aéreo e para as quais os sistemas de saúde não estão equipados para lidar. A necessária resposta a uma pandemia via quarentena e isolamento social prolongado pode criar uma recessão mundial sem precedentes, dado que os trabalhadores são impedidos de trabalhar. Os governos são agora chamados a suprir as falhas e insuficiências da iniciativa privada, desde a provisão de material médico de proteção e tratamento até ao relançamento da atividade económica e a proteção do emprego.
O problema: Um país com múltiplas vulnerabilidades ambientais
Estamos perante uma crise que tem na sua origem interações sociedade-ambiente-economia conflituosas e até destrutivas, pelo que a resposta não pode passar por um simples retorno a um status quo insustentável. Esta contribuição para o debate adota, assim, como ponto de partida um quadro de análise que tem em consideração a forma como fatores socioambientais influenciam e são influenciados pelo modo de organização da atividade económica. Este quadro de análise será necessariamente interdisciplinar, tendo em consideração quer as descobertas científicas sobre fatores de risco ambientais quer os fatores de vulnerabilidade (individuais e sociais) que estão na base das desigualdades na exposição ao risco e dano ambiental.
Aplicando este quadro de análise à realidade portuguesa, encontramos um país com múltiplas vulnerabilidades ambientais, definidas como o grau de dano resultante da degradação ambiental. Antes dos anos 1980, a regulação ambiental era quase inexistente, tendo sido criada largamente através da integração de diretivas comunitárias. Os investimentos realizados desde então para melhorar o acesso a água potável e o tratamento de resíduos tiveram um impacto muito positivo mas subsistem ainda problemas graves: poluição dos rios, escassez de água, elevado nível de produção de resíduos e baixo nível de reciclagem, ineficiência e pobreza energética, uso excessivo do transporte individual motorizado e declínio da ferrovia, poluição atmosférica e sonora nos centros urbanos, baixa disponibilidade e acessibilidade de espaços verdes urbanos, suburbanização e desordenamento do território, erosão costeira, perda de biodiversidade e um meio rural marcado pela degradação dos solos, baixos níveis de produção agro-ecológica e uma floresta transformada em monoculturas frequentemente fustigadas por incêndios. A tudo isto acresce um desempenho aquém do desejável ao nível da mitigação das alterações climáticas, com as emissões de gases com efeito de estufa a aumentarem desde o ano referência de 1990. Dada a relação entre vulnerabilidades ambientais e desigualdades sociais, torna-se imperioso implementar políticas públicas ambiciosas de investimento, regulação e contratos públicos alinhadas com princípios de sustentabilidade ambiental e justiça social.
A alternativa: Um Green New Deal para criar emprego, reduzir desigualdades e promover a justiça ambiental
O conceito de Green New Deal tem a sua origem em propostas de programas de estímulo da economia baseados em princípios de justiça social e sustentabilidade ambiental. As primeiras propostas surgiram no seguimento da crise financeira de 2007, com diferentes âmbitos geográficos e níveis de ambição. Embora nenhuma destas propostas tenha sido adotada, nos últimos anos a ideia de um Green New Deal foi recuperada, destacando-se na Europa a elaboração de uma nova proposta da parte de um grupo que inclui políticos, ecologistas, economistas e ativistas de diversas origens e a apresentação de um projeto de resolução no Congresso dos EUA, assim como a aprovação na União Europeia de um programa com algumas semelhanças, o Green Deal.
Comparando as propostas, encontramos desde logo uma divergência entre as que visam uma transformação, mais ou menos radical, do sistema económico, e as que visam meramente o aumento do investimento público verde como forma de relançar o crescimento económico. Paralelamente, identificamos eixos de problematização: a ausência de clareza ou a baixa ambição sobre os critérios para classificar um investimento como “verde” e a insuficiência das propostas para lidar com uma crise ambiental, social e económica sistémica. Mais que uma mudança estrutural, estas propostas visam uma modernização ecológica dinamizada pelo investimento público que pode permitir uma melhoria relativa, mas insuficiente do desempenho ambiental do sistema produtivo e que não põe em causa as desigualdades sociais, raciais e de género. Estes pontos críticos não implicam a rejeição da ideia de um Green New Deal, cuja necessidade decorre de ser um passo em frente no sentido da mitigação de vulnerabilidades ambientais e sociais, mas antes apontam para percalços a evitar numa possível política de estímulo para Portugal.
Por um Green New Deal para Portugal entendemos um programa de investimento público e regulação direcionado para uma mudança de trajetória, isto é, para uma transição para um modo de produção mais sustentável e inclusivo, indo muito além de meros arranjos de mercado ou tecnológicos, capazes apenas de produzir mudanças incrementais. Concretizando, as mudanças necessárias no setor da energia não são possíveis sem uma renacionalização do setor, incluindo produção e transmissão, podendo-se dizer o mesmo do setor dos transportes. A reconversão industrial não será possível sem uma presença mais forte da regulação, que terá de ir muito além dos incentivos. O ordenamento do território terá de enfrentar o rentismo imobiliário, enquanto a reabilitação das habitações deve ser guiada pela garantia do direito à habitação e a erradicação da pobreza energética. A despoluição da água, assim como a gestão dos resíduos, deve ser competência de autoridades públicas orientadas não para a garantia do direito a um ambiente limpo. A transformação do setor agrícola deve ter como objetivo a erradicação da subnutrição e a promoção da alimentação saudável, assim como deve ter em conta a necessidade de assegurar a estabilidade de rendimentos para os produtores.
Um Green New Deal é, portanto, um programa de estímulo que cria emprego remunerado dignamente e garante proteção no emprego para os trabalhadores afetados pela necessária reestruturação industrial, beneficiando diretamente as pessoas mais vulneráveis socialmente. Tendo como princípio de base a justiça ambiental, terá de assegurar a coesão territorial e a não discriminação na distribuição dos seus benefícios. Indo mais longe, deverá mesmo garantir que os maiores beneficiários das medidas de investimento ambiental serão os mais prejudicados pela degradação ambiental, o que deve ser encarado como uma forma de compensação pelas injustiças passadas. Por outro lado, sendo uma medida de estímulo, não se direciona meramente à recuperação do crescimento económico dentro de um modelo de produção insustentável e injusto, mas antes a uma reformulação do sistema económico, construindo uma economia de cuidado (respeitadora das pessoas) e ecológica (respeitadora do ambiente) como oposição ao modelo predatório do capitalismo financeiro. O seu financiamento requer reformas no sistema financeiro e nas finanças públicas, nomeadamente via criação de um banco de investimento público, emissão de dívida pública ligada a investimentos ambientais (por exemplo, pela emissão de Certificados do Tesouro Verdes) e uma reforma fiscal que garanta a justiça social, combata a evasão fiscal e alinhe a estrutura de impostos com objetivos ambientais.
Reorientar a atividade económica para a satisfação de direitos básicos, no lugar da busca do lucro, é um projeto ambicioso, sem dúvida, mas a escala da ambição é proporcional à escala do desafio colocado pela combinação de pobreza, desemprego e degradação ambiental.