O Papel do Sindicalismo nas Respostas à Crise
Manuel Carvalho da Silva, Elísio Estanque, Hermes Augusto Costa
O sindicalismo perante a pandemia
A crise económica e social resultante da covid-19 está a gerar elevado desemprego e pobreza, a aprofundar desigualdades e desequilíbrios de poder no mundo do trabalho, a fazer emergir com força o teletrabalho, a permitir a intensificação de estratégias de camuflagem de dependências hierárquicas e funcionais. Ao mesmo tempo, existem fortes sinais de que há setores da economia, como o do turismo, que dificilmente voltarão à situação anterior. Perante cenários de falências de empresas, afirma-se a necessidade de reconverter a economia, bem como de ajustar a matriz de desenvolvimento, tornando-a mais coesa, assim com é urgente a revitalização da indústria. Por outro lado, ainda não é claro como vai processar-se a saída da crise. O Estado e as instituições de regulação e intermediação como os sindicatos serão valorizados? Quais os desequilíbrios, velhos e novos, que surgirão nas relações de trabalho? Importa, assim, questionar e observar as condições limitadas em que está a desenvolver-se a ação sindical e quais as capacidades de o sindicalismo responder às suas vulnerabilidades preexistentes, agora acentuadas nos planos estrutural, organizacional e institucional. Que capacidade de resistência, de definição de estratégias, de transformação dos seus modelos de ação e mobilização terão os sindicatos?
1 - Problema: a marginalização dos Sindicatos e as suas vulnerabilidades
Do ponto de vista estrutural, no cenário de pandemia, a capacidade disruptiva do sindicalismo viu-se, pelo menos numa primeira fase, ainda mais limitada do que já se encontrava, uma vez que o confinamento geral e a paragem generalizada da economia impediram qualquer esboço de resposta própria e, por outro lado, na discussão de políticas estratégicas, o movimento sindical não tem sido chamado a ter um papel significativo. Em certas situações foi mesmo marginalizado. Se na macroestrutura a assimetria de poderes não se alterou, também podemos interpretar a ação do Estado e as medidas de intervenção que adotou – em especial no quadro do “estado de emergência” – como um reforço do seu poder hegemónico, de certa forma em contraponto com a iniciativa dos grandes grupos económicos, obrigados a recuar ou, no mínimo, a manterem-se temporariamente na expectativa, enquanto persistir a crise sanitária. Realidades como as dos trabalhadores precários (em call centres, por exemplo) forçados a trabalhar em condições de grande insegurança, a aceitarem revogações contratuais por mútuo acordo, ou a verem os seus contratos a termo caducados (mesmo nas situações em que as empresas beneficiam de apoios do Estado durante o período de vigência do lay-off) são reveladoras dessa fragilidade estrutural.
Do ponto de vista organizacional - também em resultado de um grande aumento do desemprego, em volume ainda não determinável - tende a ser menor a propensão para a captação de associados, sobretudo porque o clima de incerteza económica e de medo face ao desemprego, pode superiorizar-se à adesão a projetos coletivos. No plano institucional, a legislação laboral foi em parte “confinada”, passando a vigorar as normas de exceção. É expectável, no médio prazo, poderem surgir alterações significativas em função da restruturação da economia e do “mercado de trabalho” e também da capacidade de ação dos sindicatos. A suspensão do direito à greve decretada pelo estado de emergência, assim como a suspensão da audição das organizações sindicais, em matéria de elaboração de leis do trabalho, podem ter reflexos negativos ainda não percetíveis.
2 - Alternativa: reinvenção das formas e instrumentos da ação coletiva
A crise provocada pela pandemia realçou muito a centralidade do trabalho, a evidência do valor do trabalho, a importância do coletivo e a necessidade de se resgatar e atualizar aquela centralidade. O futuro do sindicalismo está profundamente ligado ao resultado deste combate.
Um dos desafios mais prementes que hoje devemos colocar refere-se à busca de uma conjugação equilibrada entre as formas organizacionais estabelecidas e o potencial inovador que é necessário imaginar e pôr em ação. A título de hipótese, consideramos, no atual momento, dois sentidos distintos que se prendem, por um lado, com a digitalização/teletrabalho/automação e, por outro, com o direcionamento e as novas modalidades das exigentes lutas sindicais perante os desafios da recuperação económica pós-pandemia. Em qualquer destes domínios existem elementos de continuidade e elementos que se presumem disruptivos face aos impactos da paragem abrupta das atividades económicas e devido ao confinamento. Presumindo que os impactos desta crise irão impor uma intensa reconversão profissional de amplos setores da força de trabalho (sem desbaratar as tacit skills acumuladas pela experiência), os sindicatos deverão ser protagonistas decisivos na definição e monitorização das novas formas, programas e conteúdos de formação em geral e, em particular, para a economia digital, dado a delicadeza e riscos múltiplos a ela associados.
O campo digital foi o primeiro domínio a ser mobilizado com a imposição do teletrabalho. Uma possível intervenção virtuosa no mundo digital, por parte do sindicalismo, exige um “esforço de rutura” com o sentido físico de corporalidade, da relação face a face e de formas experimentadas de afirmação do coletivo - herança secular do movimento operário, da mobilização dos trabalhadores a partir de concentrações, plenários de empresa, concentrações, desfiles, etc. - para ir ao encontro de uma dinâmica reticular apoiada no uso de plataformas como o Facebook, o Twitter, ou mesmo o utilização dos Sites e Mailing lists, ferramentas que se revelam ainda escassamente exploradas no universo sindical.
Num tempo de realce ao trabalho em equipa, de necessidade de maior sociabilidade e socialização, de reforço do coletivo contra o individualismo exacerbado, de melhor conciliação do trabalho com a vida familiar, a regulação e regulamentação do teletrabalho carecem de progressiva e bem ponderada atualização. Nesse processo, o movimento sindical necessita de uma ação ofensiva de modo a inverter tendência que tendem a acentuar desequilíbrios nas condições de vida de elementos da família em favor da prestação de trabalho de outrem, a amputar liberdades e a fragilizar a democracia. Para os sindicatos é ainda relevante que se definam bem as formas de estruturar a gestão de equipas à distância, cuidando do equilíbrio e da coesão do grupo, e que sejam devidamente estudados os impactos do teletrabalho na distribuição territorial dos/as trabalhadores/as.
Subscrevemos, por isso, a tese da necessidade de reinvenção do sentido comunitário, mas rejeitamos a ideia de que a comunidade virtual substitua as comunidades reais. O que consideramos central é a necessidade de se equacionarem diferentes escalas de análise nas quais, quer os meios digitais, quer as dinâmicas organizacionais de base e a organização em rede deverão complementar-se.
Uma das questões mais sensíveis evidenciadas pela pandemia - para a formulação das reivindicações de todos os trabalhadores - foi a da utilização do tempo, um dos bens fundamentais sobre o qual o trabalhador não pode perder o controlo. Será necessário distinguir claramente entre tempo de trabalho e tempo de fruição das múltiplas potencialidades do ser humano além do trabalho. E nessa discussão terão de emergir regulações mais ajustadas e igualitárias no estabelecimento de limites de horários em full-time, bem como mecanismos de controlo efetivo sobre o part-time, de modo a travar desajustes na divisão sexual dos tempos de trabalho. Na agenda sindical internacional poderão vir a inscrever-se novas (ou ressurgidas) formas de redistribuição além da questão salarial, embora esta, tal como o direito ao emprego, se apresente como crucial face à perda de rendimentos de grande parte da população e ao enorme desemprego. Uma ampliação de alianças entre o sindicalismo e outros movimentos (ambientalista, de defesa do consumidor, de inclusão pela diversidade, etc.) parece tender a ser mais ponderada pois permitirá, desde que não signifique perda de identidade para o sindicalismo, abrir caminho para uma centralidade do trabalho positivamente partilhada. Por outro lado, o modelo alemão da “cogestão” não poderá, no plano teórico e em certos contextos e realidades específicas, deixar de ser considerado. Ainda assim, reconhece-se que a sua eficácia, inclusive no contexto alemão, tem sido sobretudo tributária das relações (de diálogo/conflito) entre capital e trabalho, nas quais o sindicalismo por certo continuará a inspirar-se.
Mais uma vez, agora com outras especificidades, o movimento sindical português terá de saber mobilizar setor a setor, região a região, todas as suas bases para questionar e propor, ajudando a redesenhar modelos de desenvolvimento industrial, alguns dos quais de novo tipo. Se a flexibilidade da vida pode ser conjugada com mais coesão e mais capacidade inovadora, tempos de trabalho reduzidos podem conjugar-se com dimensões importantes que incidam direta ou indiretamente na economia e no bem-estar. É possível, com agendas sociais e políticas ofensivas e articuladas, contribuir para que a erosão do capitalismo mercantilista que vivemos nas últimas décadas se acentue, abrindo-se espaço a combinações inovadoras e a dinâmicas económicas e sociais mais versáteis e justas, onde a economia solidária ganhe maior peso, enquanto transformações mais profundas também se vão operando.