Saúde e sociedade
João Arriscado Nunes e Mauro Serapioni
O problema: uma pandemia que criou vulnerabilidades originais
A pandemia da Covid-19 demonstrou de maneira dramática a indispensabilidade de um serviço público de saúde, com implantação em todo o território nacional, garantindo o acesso a cuidados de saúde a cidadãos e cidadãs e residentes e dotado de meios materiais, profissionais e equipamentos que permitem uma resposta atempada e eficaz a situações de emergência sanitária, a par de atividades correntes de prevenção da doença, designadamente, para pessoas em situação de grande vulnerabilidade, e de tratamento através de cuidados de saúde, primários ou especializados. O crónico subfinanciamento do Serviço Nacional de Saúde – agravado pela crise de 2008 e pelas medidas de austeridade impostas pela Troika - e as iniciativas visando separar a função do Estado como financiador do setor da saúde da de prestador de cuidados de saúde – sustentadas na Lei de Bases da Saúde de 1990 -, acompanharam a ampliação da privatização da saúde e da gestão privada de unidades públicas de saúde através de Parcerias Público-Privadas. A aprovação na Assembleia da República, em setembro de 2019, de uma nova Lei de bases da Saúde devolveu ao Serviço Nacional de Saúde a posição central do sistema público na prestação de cuidados de saúde consagrada na lei de 1979 que o havia criado.
A pandemia veio mostrar de maneira acutilante a importância do SNS na resposta à emergência sanitária. Essa resposta consistiu, por um lado, numa definição atempada, na fase inicial de surgimento de casos de infeção, de medidas de contenção e controlo do contágio, seguindo as indicações da Organização Mundial de Saúde e acompanhando as experiências dos países que conheceram os primeiros casos de infeção pelo vírus SARS CoV-2. Apoiadas na declaração pelo Governo do estado de calamidade e, posteriormente, do estado de emergência, foram tomadas nessa fase diversas medidas, dentre as quais: a identificação de pessoas apresentando sintomas de infeção, quer provindas de outros países, quer em contexto comunitário, o seu isolamento e, se necessário, o seu internamento; o distanciamento social, a higiene das mãos e a etiqueta respiratória; a realização de testes e de rastreamento de contactos abrangendo grupos de risco ou os residentes em localidades ou lugares específicos identificados como focos de infeção; o recurso ao teletrabalho onde tal era possível; o encerramento de empresas, centros comerciais, escolas e serviços não-essenciais; e as restrições à mobilidade e a viagens. A manutenção de atividades económicas essenciais foi garantida, mas sujeita a rigorosas medidas de segurança e de controlo. Na ausência de respostas farmacológicas – medicamentos eficazes para controlar ou conter a infeção e vacinas -, estas medidas tornaram-se a principal barreira à progressão do vírus. A sua viabilização dependeu de uma estreita articulação com políticas de proteção social dirigidas às pessoas obrigadas a interromper a sua atividade laboral, mas também e, em particular, àquelas que se encontravam em situações de maior vulnerabilidade, pela sua condição de trabalhadores precários ou por pertencerem a algum dos grupos de risco definidos como especialmente vulneráveis. O balanço dos sucessos, das limitações e daquilo que falhou nesse processo não pode deixar de salientar, por um lado, a dificuldade em lidar com populações já confinadas, especialmente as pessoas idosas residentes em lares e pessoas com problemas prévios de saúde exigindo acompanhamento regular em unidades de saúde; e, por outro, o problema da proteção dos profissionais de saúde, especialmente devido a falhas na disponibilização de equipamento de proteção individual – um problema que veio a ser resolvido, mas que tornou visível uma vulnerabilidade não detetada nos serviços e o problema da carência de profissionais em número suficiente para garantir condições de trabalho apropriadas. Também no domínio da comunicação por parte do Governo e das autoridades de saúde se verificaram dificuldades que deverão ser consideradas no balanço das intervenções durante esta emergência, e que remetem para problemas estruturais em domínios como aquele que tem sido designado de biocomunicabilidade. Estas dificuldades tornaram-se notórias no processo em curso de desconfinamento, devido à relação conflitual entre a autoridade técnica dos responsáveis pela saúde fundada na injunção de “seguir a ciência” e a razão económica dos negócios fundada na paralização da atividade económica. As pressões sobre os níveis de desconfinamento, especialmente vindas de atores económicos poderosos, visavam reequilibrar para o lado da economia, a tensão entre a proteção da saúde pública e a necessidade de abertura e retomada da atividade económica e da mobilidade, especialmente aquela que alimenta a indústria do turismo e os setores que dela dependem.
As alternativas: reforçar e afirmar o SNS e a Saúde Pública, promover a saúde como direito e como política
A pandemia mostrou a importância crucial do Estado social, das políticas sociais e, em particular, dos sistemas públicos universais de saúde. Mas ela revelou igualmente as suas limitações e vulnerabilidades que, tornando-se mais visíveis em tempos de crise, se manifestam de maneira particularmente aguda quando o cenário do colapso se torna uma possibilidade, com consequências desigualmente distribuídas.
Os sistemas públicos de saúde são concebidos para assegurar o acesso a cuidados de saúde a todos os cidadãos, e a promover a saúde através da ação dos seus profissionais e das suas unidades. As situações de emergência a que respondem são geralmente limitadas no espaço e no tempo, e mesmo quando existe forte pressão sobre o sistema, este tem geralmente capacidade de resposta. Mas emergências de saúde como aquela que conhecemos agora criam uma pressão sobre o sistema que pode levar ao seu colapso, se não existir capacidade de contenção da situação através de medidas de saúde pública, com as consequências sociais, económicas e políticas conhecidas e todas as ramificações da crise sanitária em crise mais ampla.
A partir da experiência de enfrentamento da pandemia da Covid-19 é possível formular várias propostas de ação com relevância tanto para a preparação da resposta a emergências futuras, quanto para a reconstrução da sociedade de modo a responder às vulnerabilidades, desigualdades e consequências de um modo de vida que é promotor de exploração, de exclusão e de doença.
Há três tipos principais de resposta aos problemas identificados, que permitam um reforço da ação do SNS e da saúde pública, incluindo a preparação para situações de emergência de grande impacto e extensão.
O primeiro diz respeito à definição geral de políticas para a saúde e ao reforço do SNS e da saúde pública, e está alicerçado no reconhecimento da importância da saúde como dimensão transversal a todas as políticas públicas, garantindo a sua articulação intersectorial. Um ponto de partida de especial importância será a melhoria da articulação entre o SNS e as suas unidades e a área de saúde pública, através de formas de produção de informação e de coordenação que permitam assegurar resposta atempada a emergências sanitárias.
Uma condição de viabilidade desta resposta é o reforço do financiamento do SNS e das instituições e serviços de saúde pública, assim como de atividades de investigação orientadas para a identificação das diferentes formas de vulnerabilidade social e para a formulação de políticas públicas dirigidas a estas. Será possível, assim, melhorar a preparação de unidades de saúde e dos seus profissionais para emergências sanitárias de grande dimensão e impacto, atendendo à localização, dimensão e características da população que servem.
A proteção de profissionais e trabalhadores em saúde, através da criação de stocks de equipamentos e sua distribuição adequada, mas também de organização apropriada dos espaços de acolhimento e de internamento será, naturalmente, um aspeto particularmente relevante para o sucesso dessas medidas.
O segundo tipo de resposta abrange as relações do setor da saúde e do SNS, incluindo a saúde pública, com a sociedade.
É desejável um maior envolvimento das instituições de saúde com a sociedade e com as organizações e movimentos ligados à saúde ou envolvidos com populações vulnerabilizadas, a realizar através de atividades de produção e partilha de informação, promoção de saúde, organização de capacidade local de resposta a emergências, em articulação com a proteção civil e o SNS, e maior capacidade de intervenção em situações de vulnerabilidade.
Uma iniciativa importante neste campo é a oferta de cursos e seminários de formação, através de atividades de extensão baseadas na colaboração entre instituições de ensino superior, de investigação e de saúde e a proteção civil, permitindo a constituição, em tempos de “normalidade”, de uma reserva de voluntários para intervenção em ações e emergências de saúde pública.
É relevante ainda o reforço da educação em saúde, tanto nas escolas como em ambientes não-escolares (incluindo ambientes de trabalho), incluindo a educação dirigida à capacitação para resposta a situações de emergência e à promoção da saúde. Estas ações poderão ser realizadas no âmbito de atividades curriculares, ou de atividades extracurriculares já em curso, como parte de programas de extensão de instituições de ensino superior e de investigação.
O terceiro tipo de resposta consiste na criação de programas de investigação participativa/colaborativa e interdisciplinar, envolvendo comunidades, ativistas, movimentos ligados à defesa e promoção da saúde e profissionais, dirigidos à compreensão dos processos de surgimento de novas ecologias da saúde e da doença, e da determinação mútua da saúde humana, da saúde animal, da saúde de ecossistemas e da economia política, na linha das propostas existentes no âmbito da versão estrutural da abordagem One Health.