Vulnerabilidades familiares: Custos económicos e psicossociais em famílias com filhos jovens adultos
Ana Paula Relvas e Gabriela Fonseca
As famílias existem no espaço e no tempo. A análise sistémica e desenvolvimental da família remete para a articulação destas duas dimensões (análise multicontextual), concretizando-se na conceptualização do ciclo vital da família - sequência previsível de transformações na organização familiar, sistematizadas em diferentes etapas, às quais se associam um conjunto de tarefas desenvolvimentais específicas (crises esperadas, momento provável de stress individual e familiar). A estas crises podem aliar-se ou sobrepor-se outras, as não esperadas, internas (como a morte de um filho) ou, muitas vezes, externas (como os eventos históricos de carácter económico e político e acontecimentos imprevisíveis, tais como catástrofes naturais), que fazem com que a família fique, então, sujeita a um pile up de stress. As famílias são, assim, confrontadas com a necessidade de efetuar mudanças no seu funcionamento no sentido do ajustamento e adaptação.
O problema: o diferimento temporal da plena aquisição da identidade adulta
Um desses momentos de transição, específico e esperado no ciclo de vida das famílias, decorre da aproximação dos/as filhos/as à idade adulta. É um período em que cabe aos jovens adultos diferenciarem-se da família de origem, estabelecerem um self ao nível do trabalho e da carreira profissional, e adquirirem independência financeira; e em que cabe às famílias/pais promover o lançamento dos/as filhos/as, ou seja a sua entrada no mundo adulto. A relação entre os subsistemas parental e filial torna-se mais horizontal, como é característico dos relacionamentos adulto-adulto. Espera-se, assim, que seja na adultez emergente – período de desenvolvimento individual que corresponde à etapa familiar anteriormente descrita e que, segundo os últimos dados, se pode estender em Portugal e nos países do sul da Europa desde os 18 anos até sensivelmente aos 30 anos – que as relações entre os indivíduos e as suas famílias mudem mais radicalmente.
A transição para a idade adulta tem vindo a complexificar-se nos últimos anos, atendendo a mudanças demográficas, económicas e socioculturais, e à subsequente ausência de trajetórias pré-definidas na aquisição do estatuto de adulto, às quais se somam a crise económica, o desemprego jovem, e a instabilidade no mercado de trabalho. E agora a crise pandémica. Como é sabido, hoje em dia, os/as jovens estudam até mais tarde, ficando adiada a aquisição dos critérios tradicionais para se ser considerado adulto, tais como arranjar um emprego estável e a tempo inteiro, casar e ser pai/mãe. A própria representação da idade adulta na atualidade encontra-se em mudança, no sentido de estar cada vez mais assente na capacidade de o indivíduo ser autossuficiente e autónomo de um ponto de vista psicológico e emocional, e menos em critérios socialmente determinados. A aquisição de independência financeira por parte do/a jovem adulto/a assume-se, assim, como uma tarefa central nesta etapa, e lidar com exigências macroeconómicas inesperadas e com a instabilidade ou a frustração de expetativas assume-se um desafio duplo para filho/as e pais/mães. Mais especificamente, os jovens adultos podem antecipar/experienciar dificuldades no estabelecimento da sua carreira e aquisição de independência financeira. Os resultados de um estudo levado a cabo em 2016, como uma amostra de 332 jovens adultos em Portugal, mostraram que cerca de 70% dos participantes reportaram receios futuros relativos ao trabalho/carreira (e.g., medo de não conseguir um emprego, de ficar desempregado) e 24% mencionaram receios futuros relativos aos recursos financeiros (e.g., não ser capaz de me sustentar). Por sua vez, os pais/mães podem antecipar e experienciar dificuldades na definição de como ser um bom sustentáculo para os/as filhos/as nestes processos. Com efeito, cada vez mais, o sistema familiar assume um papel de suporte de extrema relevância na transição dos/as filhos/as para a idade adulta, na medida em permite as explorações típicas deste período através do apoio não só emocional como financeiro, tal como confirmámos num outro estudo levado a cabo em 2017-18.
Neste enquadramento, podemos falar de sobrecarga familiar. Justifica-se, desta forma, o foco nas vulnerabilidades familiares nesta etapa de desenvolvimento específica independentemente do momento histórico e social; contudo, a verdade é que ele se torna particularmente relevante em tempos de instabilidade qualquer que seja a sua origem, financeira, política, de saúde, ou outras. No atual contexto português, não é só a pandemia, a Covid19, que aponta para essa instabilidade. Na verdade, as famílias e particularmente os jovens adultos, vivem a memória da designada Grande Recessão (2007/08-2009) de uma forma experiencial e vivencial, quási presencial, como nos mostraram num estudo qualitativo levado a cabo em 2018-19, com medo do futuro por pouca confiança na retoma económica. Sobre esta memória veio instalar-se a crise pandémica, dificultando ainda mais o cumprimento da tarefa desenvolvimental da atual geração de adultos emergentes que vê o seu futuro estatuto e identidade adulta de novo adiado e revestido de dúvidas e incerteza, sem saber antever quando e como se irá concretizar.
A alternativa: o fomento da solidariedade comunitária e familiar intergeracional
No estudo qualitativo que referimos atrás, as famílias identificaram como maiores desafios as exigências e implicações decorrentes do contexto macroeconómico vivido no momento (outubro de 2018 a janeiro de 2019) e as preocupações em torno do futuro dos/as jovens – como, por exemplo, a sua capacidade para se autonomizarem, as oportunidades que podem ou não vir a ter, bem como a capacidade dos pais para suportarem os processos de exploração de identidade e de transição para a idade adulta. Para lidarem eficazmente com estas preocupações, as famílias participantes reportam-se aos processos familiares relativos à coesão, perspetiva positiva e perseverança, e à comunicação intrafamiliar. Não obstante, o recurso mencionado mais frequentemente neste tópico foi o sistema de suporte parental e familiar. Ainda nesse estudo, para os/as jovens, é fundamental poderem contar com os pais nesta fase da vida, de um ponto de vista emocional e instrumental/financeiro. Os pais, por seu turno, mostraram que “estavam lá para eles”, tentando dar-lhes o melhor suporte possível para esta transição, dando apoio emocional, conselhos, suporte financeiro… E para cumprirem esta tarefa, sublinham a necessidade do apoio da sua própria rede de suporte (família alargada, instituições). Neste aspeto, a educação, particularmente o ensino superior ou especializado, e o seu adequado ajustamento e resposta às exigências atuais, poderão ter um papel muito importante na renovação das expetativas de futuro bem conseguido de jovens e famílias. Efetivamente, o acesso a essa formação pode (re)significar o adiantamento e instabilidade como melhor preparação e aquisição de competências para lidar com a volatilidade e incerteza atuais. Poderá, assim, funcionar como mecanismo de coping nestes tempos de vulnerabilidade e psicossociologicamente difíceis para todos e, em particular, para esta geração e suas famílias. Em relação à co-residência, embora a maioria tenha referido que espera que os/as filhos/as consigam ter as suas próprias casas (como é vontade expressa dos jovens), dizem sempre que, se necessário, “para eles/as as portas das suas casas estão sempre abertas”. Esta questão surge assim normalizada, contrariamente ao que pode acontecer em contextos/países mais individualistas, em que a co-residência entre pais e filhos e o eventual retorno destes à casa onde cresceram depois de já terem saído da mesma parece ser vivido com maior angústia e sentimento de fracasso por toda a família.
Tudo isto parece ser fulcral como alternativa neste momento de sobreposição de crises (pandémica, económica, laboral, de redescoberta de valores individuais, familiares, comunitários e sociais), em que a família de origem pode ser um sistema de suporte para os/as jovens adultos ou adultos emergentes. A transição para a idade adulta é, neste sentido, um empreendimento individual e familiar, um projeto conjunto em que pais e filhos estão ativamente envolvidos. Atendendo à nossa cultura e valores coletivistas e familiares, na sociedade portuguesa, a “solidariedade familiar intergeracional”, (bem) enquadrada no contexto social, tem (terá) particular expressão neste momento de grande vulnerabilidade.