A crise metropolitana e os meios de a esconjurar
Ana Drago
O problema: um território metropolitano social e economicamente desequilibrado
Há uma extensa literatura que dá conta da relevância do urbano nas configurações “variegadas” das políticas neoliberais e da centralidade do sector imobiliário nas suas várias estratégias nestas últimas décadas. Harvey falava de “spatial fix” para dar conta dos processos de transferência dos excedentes de capital da indústria transformadora para o circuito da construção, e as possibilidades semânticas dessa conceptualização – fix como “consertar”/“dose” – sublinham que a produção do espaço urbano constitui uma peça central, embora temporária e instável, no “alívio” das recorrentes crises dos capitalismos contemporâneos. Assim, neste período, observámos como as agendas de governação neoliberal convocaram sucessivamente a reinvenção da cidade para relançar estratégias de acumulação e organizar um novo capitalismo pós-industrial (e financeiro) nas sociedades centrais.
A reinvenção da cidade desenha-se sempre como projeção idealizada de um regime de poder: pelos processos de transformação que coloca em marcha, mas também pelo modo como procura sustentar-se enunciando um futuro mobilizador. Sabemos que nas últimas décadas, as estratégias de renovação urbana tenderam quase sempre a acarinhar a gentrificação e o fomento da especulação imobiliária. Contudo, e para a nossa discussão, procuraram legitimar-se com instrumentos de planeamento e/ou discursos políticos que prometiam novas economias estruturadas por indústrias tecnológicas e “criativas”, objetivos “sustentáveis”, grandes eventos culturais ou desportivos e/ou urbanismos “inteligentes”, para usar aqui os slogans repetidos ad nauseam. Em Portugal, a Expo 98/Parque Expo seguiu este modelo: um grande evento cultural com a requalificação de espaços urbanos abandonados pelo retrocesso das grandes indústrias, e que ligou planeamento público e iniciativa privada.
Relembro estes debates pelo que contrastam com o mais recente spatial fix na economia portuguesa. Aqui e no contexto que se seguiu à crise financeira de 2008, também o urbano foi convocado a fazer parte da “solução”. Com o “Memorando da Troika” de 2011 iniciou-se um processo que apontou a habitação e o imobiliário como um dos sectores fundamentais para refazer a economia portuguesa – liberalizando, internacionalizando e rentabilizando esse mercado. Contudo, essa convocação da cidade para participar na resposta à grande crise de 2011 não assentou em qualquer projeto político de reinvenção da cidade e da metrópole; não existiu qualquer instrumento de planeamento político-territorial; não houve qualquer reflexão que pensasse o território na definição de políticas. A resposta à crise financeira resumiu-se a favorecer a rentabilização da cidade.
Falamos de rentabilização da cidade para indicar a estratégia seguida de usar o stock imobiliário e a imagética da cidade para atrair investimento estrangeiro e procura externa – ou seja, apostou-se na gentrificação transnacional e no turismo de cidade assente de procura externa como forma de valorização da cidade – sem qualquer alusão, por mais ténue que fosse, a objetivos de renovação, requalificação urbana ou aumento/melhoria da provisão habitacional. Nesse sentido, no spatial fix português de 2011 não houve plano: não foi considerada necessária qualquer intervenção coordenada de políticas ou de atores públicos. A política resumiu-se, apenas e só, a abrir espaço ao mercado.
Este modelo começou por liberalizar o mercado de arrendamento, e centrou-se na captação do investimento estrangeiro dirigido ao imobiliário – com instrumentos como os “Visto Gold” e o regime fiscal dos Residentes Não-Habituais. Esse investimento sustentou o aumento continuado do valor das transações de prédios criando um mercado metropolitano de habitação muito desigual e “acima das possibilidades” da esmagadora maioria dos residentes; e as famílias portuguesas “desfinanceirizaram” a sua relação com a habitação pela significativa contração do crédito hipotecário atribuído no país. Por outro lado, a lógica desta década foi rentabilizar ativos existentes e não produzir novos ativos. Por isso, apesar do aumento exponencial dos preços no imobiliário metropolitano, o sector da construção que se havia contraído em 2008/09 nunca recuperou a sua importância no emprego ou na produção de novos alojamentos. Sem novos tipos de ofertas, os preços na habitação subiram exponencialmente. Isso implicou, por um lado, o aumento do peso das despesas de habitação para arrendatários e para os segmentos populacionais que adquiriram casa recentemente a preços mais elevados; e, por outro lado, uma nova ronda de periferização residencial – as estimativas apontam para que, entre 2006 e 2017, Lisboa terá perdido quase 10% da sua população, ao mesmo tempo que houve um crescimento de outros concelhos, em particular na coroa exterior da AML.
Esta rentabilização da cidade apoiou-se numa outra estratégia de relançamento da economia: a atividade turística. Isso significou, por um lado, um enorme desvio de casas para acolher turistas. Na AML, o número de dormidas cresceu exponencialmente; a oferta hoteleira quase duplicou na última década; e, em particular, o alojamento local foi explicitamente fomentado por um regime fiscal convidativo, que se expandiu sem regulação territorial até 2019. Quase um terço do total do alojamento local registado situa-se na AML: só a cidade de Lisboa concentra 21% desse total nacional e ¾ dessa oferta lisboeta refere-se a habitações completas. Hoje, com o colapso abrupto do turismo, milhares de alojamentos no centro lisboeta estarão eventualmente vazios. Por outro lado, o turismo e a gentrificação transnacional alimentaram atividades económicas – restauração, lazer, etc. – que cresceram apoiadas em emprego pouco qualificado, precário e de baixos salários. A velocidade com que esse modelo de economia pareceu evaporar-se com o surto da pandemia sem um horizonte de recuperação é a prova da sua fragilidade para o futuro.
O novo tempo de confinamento parece apontar para um choque imenso e duradouro neste modelo de rentabilização da cidade: os fluxos turísticos não regressarão em breve aos valores dos últimos anos; e a crise económica “global” desenha cenários de deflação para o imobiliário. Se nada for feito, a crise social e económica vivida na área metropolitana de Lisboa será muitíssimo severa. Nascerá no centro da metrópole, espalhar-se-á nas periferias habitadas pelos trabalhadores que encontraram emprego nesse modelo extrativista e desequilibrado da gentri-turistificação, e terá impactos em todo o país.
A alternativa: um plano em escala metropolitana para a qualificação económica e social
Seria erróneo sugerir que este modelo de rentabilização da cidade emergiu num espaço metropolitano que se apresentava social, urbanística e economicamente equilibrado antes da crise de 2008. Pelo contrário: a AML foi-se fabricando em processos políticos que não eliminaram a reprodução de desigualdades sociais no espaço urbano. Aliás, na democracia portuguesa, a habitação foi sempre uma política fraca quer na provisão direta de bem-estar; quer na sua capacidade redistributiva. O caso português aponta, aliás, que o incentivo das políticas públicas a uma “democracia da casa própria” fomentou a financeirização da economia – que teve no modelo de rentabilização da cidade pós-2011 e agora no seu colapso os seus mais recentes capítulos.
O enfrentamento desse colapso deve assentar no combate às fragilidades que se tornaram visíveis por estes dias. Precisamos de políticas públicas que contrariem o papel da habitação na financeirização da economia; que criem emprego qualificado e ancorado no território; e que contribuam para a transição energética. Isso traduz-se em: 1) reforçar o parque habitacional público; 2) direcionar o considerável stock habitacional que até aqui servia de alojamento local para o arrendamento urbano acessível, e assim contrariar o endividamento das famílias e a periferização residencial; e 3) relançar a economia/emprego local preparando a requalificação energética e ambiental do edificado e do enorme desafio da mobilidade metropolitana (que será ainda maior se houver novos surtos de contágio).
A construção e implementação de uma agenda de vocação económico-territorial deste tipo exige articulação, compromisso e coordenação. É, portanto, necessário fazer o que o modelo de 2011 de rentabilização da cidade não fez – retomar o planeamento das políticas públicas como processo político de construção de uma orientação partilhada entre atores, escalas e sectores à escala metropolitana.