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2021-05-18
#Me too e Eu também!
Pedro Abafa

O movimento #Me too, maioritariamente feminino, que nos últimos anos tem aparecido em todo o mundo, está a ter também repercussões em Portugal com o aparecimento de vários testemunhos nas últimas semanas, onde várias mulheres, figuras públicas, revelaram ter sido vítimas de assédio sexual em contexto laboral. 

A discussão do tema do assédio sexual na praça pública é bem vinda, e promove a “consciencialização” social para estes comportamentos abusivos, não consentidos, intimidatórios e invasivos da liberdade individual, que afetam mulheres todas as classes sociais, mas também, ainda que com menor representatividade, homens. 

Segundo Afonso de Albuquerque, em 2006, no livro Minorias eróticas e agressores sexuais, este conceito “pode ser definido como um comportamento de natureza sexual (verbal ou físico) cuja rejeição (explícita ou implícita) pelo indivíduo afeta o seu emprego, interfere com a sua capacidade de trabalho ou provoca um ambiente de trabalho ofensivo ou hostil”.

O conceito do assédio sexual terá começado a ser publicamente discutido nos movimentos para os direitos das mulheres nos anos 70. Promovendo a discussão sobre os direitos da mulher, a discriminação racial e as condições socioeconómicas. 

Durante o último século, tem havido mudanças profundas em relação à sexologia, à identidade sexual, à orientação sexual e aos papéis de género, que são construídos socialmente à luz de uma determinada cultura e que regulam os aspectos da vida social das pessoas e que quase sempre eram discriminatórios para as mulheres.

Com a entrada das mulheres nos contextos laborais anteriormente ocupados maioritariamente por homens, o papel social da mulher tem vindo a ser modificado, a mulher deixa também de ter apenas um papel de mãe e cuidadora do lar e começa a ter uma carreira e ascensão profissional, que na maioria das vezes acumula com as restantes atribuições.

Apesar de haver algumas mudanças no sistema de crenças e nos papeis de género, mantêm-se em paralelo, uma representação mais "formatada" ou conservadora e patriarcal, que promove condutas sociais e individuais, assentes em discriminação de comportamentos e impõem algumas normatividades ainda socialmente aceites.

Não obstante a maioria dos agressores serem homens e as vítimas mulheres, existem também vítimas no masculino, talvez menos assumidos devido aos estereótipos impostos, assim como agressores no feminino. Sabemos também que o género masculino não é sinónimo de agressor, sendo que muitos homens recusam este papel de domínio perante o género feminino, mas muitos de nós independentemente do género, de uma forma ou de outra somos influenciados pelos papéis de gênero socialmente “aceites ou definidos”.

Estes comportamentos em contexto laboral, no âmbito da violência sexual podem passar pelo contacto físico não desejado através de insinuações, propostas e comentários de cariz sexual; mas também por violência psicológica como a desvalorização do seu trabalho, ameaças de despedimento, de chantagem e de depreciação em relação ao seu aspecto físico. Assim como no assédio moral, expondo a vítima a situações humilhantes e constrangedoras de forma repetida. Contudo estes podem também acontecer em outros contextos, assentes numa relação de poder, tais como em contexto escolares, de saúde e religiosos, entre outros.

O assédio sexual afeta a vivência da sexualidade das vítimas, quer à luz do seu próprio desenvolvimento emocional, quer na forma como se veem perante essa situação, na relação com os agressores e nos seus vários contextos de vida, balizados pelo suporte social disponível. A sexualidade, tal como definida pela OMS (1992) é "uma energia que nos motiva a procurar amor, contacto, ternura e intimidade, que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, é ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual; ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, influencia também a nossa saúde física e mental".

É através das relações com os outros que nos vamos construindo/transformando enquanto pessoas, para viver as relações que contribuem para a nossa identidade ao longo da vida e para o nosso equilíbrio físico e psicológico.

Nós somos o que acreditamos ser, as nossas histórias transformam-se em memórias, que se vestem de crenças e dão forma à forma, de como nos vemos e nos damos.

Muitas vezes a própria vítima, poderá demorar a reconhecer que o é, sendo que por vezes estes comportamentos sentidos e vividos com sentimentos de medo, de humilhação e de “culpabilização” de forma solitária e escondida, podem levar ao desenvolvimento de quadros clínicos como ansiedade, depressão e perturbação de stress pós traumático. Estes comportamentos poderão também levar a perda de produtividade, de dúvidas e receios de represálias e de descredibilização pessoal e de abandono de uma carreira pessoal. 

Movimentos como o #Me too, potenciam o empowerment das vítimas, e incentivam o saber dizer ”não” e o sentir que a sua situação não é única, libertando-as dos atos, que foram cometidos contra a sua individualidade, na maioria das vezes ligados a uma relação de poder e à invasão do seu espaço. Seria contudo desejado que esta discussão conduzisse, também, à assunção por parte dos potenciais agressores e da sociedade em geral, de algo tão básico como, o ouvir o “sim” para a “aproximação autorizada” ao outro.  

Podemos falar de medidas de criminalização mais duras e eficazes para estes comportamentos, que deverão sê-lo, mas enquanto indivíduos e agentes de direitos e deveres na sociedade não podemos apenas colocarmo-nos no papel de espectadores não atuantes, que esperam que a justiça seja feita, enquanto olhamos para o lado, quando nos deparamos com situações de assédio e de violência sexual.

Temos de parar de culpabilizar as vítimas, centrando nelas a culpa dos atos perpetuados e a não queixa, e assumir enquanto sociedade o caminho a seguir. É necessário aumentar a discussão pública e a responsabilidade de todos, na mudança de mentalidades e dos sistemas de crenças atribuídos a cada género e no respeito pela individualidade e auto determinação de cada pessoa independente do seu género, da sua orientação sexual, da sua cor de pele, da sua etnia, da sua religião e da sua condição sócio económica. 

Precisamos repensar os papéis dos homens e das mulheres e o que queremos enquanto sociedade, pois é sabido que existem diferenças entre géneros, mas também deverá haver igualdade de oportunidades entre géneros. É importante que se promovam relações saudáveis que se baseiem em direitos como a liberdade, igualdade, privacidade, autonomia, integridade e dignidade para tod@s.

Estas mudanças terão de acontecer na comunidade e na família e nos modelos parentais e de género. Ao nível educacional, devemos dotar as nossas crianças e jovens de uma educação que não deve ter apenas currículos escolares assentes em conteúdos académicos e no alto desempenho cognitivo, mas também do ensino e experimentação das emoções e dos direitos humanos, da educação sexual, da promoção de competências pessoais e sociais que assentam no conhecimento de si e do outro, na definição de limites e respeito nas relações interpessoais e de tomada de decisões conscientes para o desenvolvimento dos factores protectores e promotores da saúde global, para uma vivência plena da sexualidade em sociedade. 

 

Pedro Abafa 

Psicólogo clínico