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2021-05-17
“Tão ladrão é o que rouba, como o que fica à porta.”
Susana Gouveia

(A propósito da afirmação: “os imigrantes ficam com o trabalho que os portugueses não querem aceitar” – a questão é: como é que há quem “ofereça” determinadas condições de trabalho?)

Em Odemira, o poder da Humanidade falhou.
Como é que no século XXI existem, em território português, “pessoas que submetem outras pessoas” à escravatura? – considerando que Portugal foi pioneiro na sua abolição, em 1761...
Onde fica o dever de cidadania, de denunciar a prática deste tipo de atitudes?
Onde fica a consciência de cada pessoa que, nas rotinas diárias, se cruzou com imigrantes, a quem outros iguais retiraram o apoio aos mais vulneráveis, subtraindo a cada dia menos horas de igualdade?

Não é uma questão (só) política; acima de tudo, é a ausência dos princípios estruturantes da dignidade humana.
Há, com toda a certeza, “outras Odemiras” – onde o direito à vontade própria perdeu força, cedendo espaço à escravidão; onde seres humanos são transacionados com ligeireza.

Portugal é território de crise humanitária.
As réstias de imparcialidade e neutralidade perderam-se, por entre as mãos de trabalho daquelas pessoas que colhem frutos vermelhos, ficaram secas pela aridez dos elementos, mas também pela forma com que outros seres humanos lidaram com elas.
As cicatrizes do processo migratório são profundas e doem a cada tanger de memória sobre cheiros, imagens, toques ou sons, obrigando a que a viagem perdure no tempo e no espaço.
A somar à falta de respeito pela dignidade humana, com a retirada de documentos de identificação, junta-se a incapacidade de fluência linguística; bem como, a carga emocional de vulnerabilidade absoluta presente nas narrativas de mulheres com crianças de colo – tomando os factos, uma luz de contornos inadmissíveis.

Muita tinta e minutos correm com visualização de imagens que são reflexo da falta de respeito pela condição humana; sendo que, continuam intocáveis e nas sombras, respostas que ferem direitos humanos conquistados há tantas centenas de anos.
Aceder às imagens dos espaços onde os imigrantes (sobre)viveram meses a fio, protege dos detalhes da real dimensão da des-humanização, apesar da exposição secundária ou terciária. Contudo, mantém-se a preocupação sobre até onde vai o limite da ganância e a capacidade criativa para conquistar vidas por si só fragilizadas.

Urge intervir com ponderação e respeito pelas conferências internacionais que prevêem a protecção do direito internacional humanitário e que Portugal assinou. É urgente agir, em conjunto e junto, de pessoas que fugiram de zonas de conflito, de locais insalubres e que, não fora um mal comum (como a pandemia), continuavam a ser tratados como objectos, com vista à realização de dinheiro, por meio de actividades sazonais, fisicamente exigentes e com regime de intensividade que se torna violento de várias formas.

Tem sido notória a ausência de cuidado na comunicação, de todas as partes envolvidas. Esquecendo – quem dirige os diversos gabinetes de comunicação – as fragilidades prévias, e explorando filões de sensacionalismo. Iludindo o comum mortal com o argumento de que, uma demissão (seja de quem for), irá trazer de volta a honra, a dignidade, o orgulho e a autoestima, àqueles que, durante dias a fio, trabalharam além do máximo, para garantir que no dia seguinte poderiam continuar a respirar.
Pouca atenção dedicada a um eficaz e eficiente processo de comunicação, potencia a estigmatização e incentiva extremismos. É preciso não esquecer que, os discursos negativos e os eventos com carga potencialmente traumática, são “pegajosos” – há que “trabalhar ao contrário”.
Comportamentos extremistas ficam a ganhar, quando se abrem brechas nas bases dos pilares estruturantes da sociedade – como a ausência de direitos humanos que tanto custou a conquistar.

Se a pandemia trouxe oportunidades, algumas delas passam pela desocultação de diversos tipos de abuso de poder, escravidão, tráfico de seres humanos, violência na intimidade, mas também nos locais de trabalho.
O último ano, tal como previsto em qualquer cenário de crise humanitária, trouxe o que de melhor e pior, os seres humanos e as organizações/ entidades/ instituições, são e fazem no seu dia-a-dia.

A necessidade de distanciamento físico, mas também as regras necessárias ao bem-estar global e saúde pública, demonstram o quanto interdependemos uns dos outros e o quão frágeis podemos ser, caso um dos “elos da cadeia de valor humano” se partir ou tiver “má índole”. É a segurança de todos que fica em causa. É a vida comunitária que sofre impactos diversos – inclusive, no domínio dos valores e princípios que regem a actual geração.

Por muito que se analisem as diferentes operações de deslocação dos imigrantes, há um vector que se mantém inalterado desde a chegada a Portugal: ausência de preocupação em não causar mais dano do que aquele que já traziam de suas casas, a muitos milhares de quilómetros de Portugal.
Assume enorme relevância o planeamento da reintegração sociocomunitária de um grupo minoritário.

Não obstante, é importante pensar com esperança, capacidade de “pensar sem caixa” e ter uma visualização positiva sobre quais as melhores estratégias para reconstruir de modo sólido, com bases estruturadas, consistentes e coerentes, o caminho de valores e princípios, deveres e direitos, que foram sendo perdidos e ajustados a uma “normalidade” que, com certeza, não se pretende que seja “normalizada”, nem definida como “actualidade”.


Lisboa, 08 de Maio 2021

Susana Gouveia

Psicóloga e Investigadora-Colaboradora do Observatório do Trauma/CES