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2020-10-15
15 DE OUTUBRO DE 2017: 3 ANOS DEPOIS, 3 REFLEXÕES 
Textos de Sofia Caetano, Sandra Tavares e Ana Margarida Jerónimo

 

Numa manhã de domingo, densificada por um ar progressivamente irrespirável, iniciou-se uma crescente inquietação, com o aproximar do incêndio à cidade de Seia. Uma inquietação que se prolongou pelo inferno da tarde e da noite, apenas existindo um leve apaziguamento de madrugada, com a certeza, que os meus estavam sãos e salvos, ao contrário de outros que sofreram no corpo e na alma perdas de vária ordem. A todos que durante as horas de aflição se mantiveram a trabalhar sem saber dos seus, o meu imensurável reconhecimento e agradecimento.

No dia seguinte, repletos de emoções e sentimentos, empurrados e cercados pela catástrofe, agilizamos respostas de intervenção de saúde mental comunitária, em colaboração com os municípios, formando uma equipa solidária, de resposta imediata e pronta aos impactos do incêndio e as suas sequelas mais evidentes. Foi mandatório a preparação para o imprevisível. Imperou na análise, o pragmatismo, aliado à experiência profissional, flexibilidade e responsabilidade partilhada. Os dias seguintes, foram de uma azáfama estonteante, na vontade firme de assegurar o assegurável.

Aprendemos muito, muito mesmo, a todos os níveis. A maior aprendizagem talvez, tenha sido, algo tão elementar e simples, como seja o valor da comunicação em situações de catástrofe. Comunicar as más notícias, com a brevidade possível, de forma objetiva e com afeto, mas também comunicar aos outros a tranquilidade pelo bem-estar dos seus. Num mundo onde a tecnologia é cada vez mais dominante, é muito importante agilizar a comunicação. Não o fazer, remete-nos para os primórdios existenciais. Com a aprendizagem recebida, hoje não faríamos diferente, faríamos de certeza melhor.


Durante estes anos caminhámos juntos, solidários, de mão dada, de luto em luto, de conquista em conquista, por vezes obstaculizado pela sempre presente e malfadada burocracia, em detrimento da prometida agilização de processos. Enobrece-nos ver a dignidade e resiliência da nossa população, do nosso povo.

Sofia Caetano, Psiquiatra ULS Guarda

 

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Na tarde do dia 15 de outubro de 2017 começaram a ser visíveis as primeiras manifestações de um incêndio, vindo do concelho vizinho. Em pouco tempo tive a noção de que a situação era realmente grave e saí de casa para prestar auxílio sem saber muito bem o que fazer. O cenário tornou-se terrivelmente medonho, vi pânico no olhar das pessoas, um medo terrível, tenho ainda hoje memórias de um fumo intenso que cegava e não deixava o olhar alcançar a verdadeira dimensão da ocorrência, da dificuldade em respirar, das explosões das botijas de gás e do som do fogo. Estas experiências transportaram-me para um cenário de guerra, sem nunca lá ter estado.


Fui contactada pelos vereadores da Câmara Municipal de Gouveia que solicitaram a minha colaboração e juntos desenhamos o esboço do que se tornaria um rudimentar plano de emergência psicossocial. Rapidamente definimos tarefas e linha orientadoras daquilo que julgámos essencial, criando condições físicas e humanas para receber/socorrer/ prestar os primeiros socorros psicológicos às vítimas, em locais seguros. Foram envolvidos outros agentes da comunidade e profissionais de serviços de saúde e ação social. O principal objetivo no momento era, tanto quanto possível, aliviar a intensidade do sofrimento e transmitir sentimentos de segurança às vítimas. A noite foi muito longa e muito sofrida, repleta de incertezas. Não tivemos um minuto de descanso entre receber, resgatar, encaminhar, tranquilizar, alimentar as vítimas e até os seus animais de companhia. Aquela noite parecia não ter fim!


Mas também experienciei o medo, de perder os meus mais próximos que se encontravam na estrada cercados pelo fogo e sem alternativas de fuga. Tentei ir ao seu encontro, mas fui impedida pela GNR, senti a frustração de não conseguir socorre-los e naquele momento a imagem que me assolava era a fatídica estrada de Pedrógão. Achei que não veria mais os meus filhos e o choro foi inevitável. Nesse momento, limpei as lágrimas e com o coração muito apertado voltei ao local de acolhimento das vítimas, e lá continuei a fazer o meu melhor, até hoje, não sei de onde veio tal força.


Quando o dia chegou, estranho, cinzento, quase em silêncio fomos percebendo a dimensão dos danos materiais, na natureza e nas pessoas, mas sentimos um enorme alívio por não haver vidas a lamentar. 


Nos dias subsequentes, intensificou-se a necessidade de ajuda em diferentes contextos, numa intervenção de proximidade foram avaliados os danos, e imediatamente se estabeleceu a articulação com o serviço de psiquiatria do Hospital Sousa Martins para encaminhamento das situações mais críticas. Percebemos que a maioria das vítimas, num primeiro contacto, experienciava reações agudas de stresse/choque emocional descritas com expressões como “tenho 80 anos e nunca vivi nada assim, …. Parecia o fim do mundo, …nunca tive tanto medo na minha vida”.


O acompanhamento e apoio prestado na fase de reabilitação incluiu suporte psicológico, apoio em questões básicas de alimentação, habitação ou deslocação às consultas de psiquiatria, entre tantas outras.


Após 6 meses percebemos que ainda existiam/mantinham fatores de risco para a saúde mental, sobretudo em indivíduos idosos, com fraco suporte familiar, económico e social e em situação de maior isolamento demográfico. O mesmo aconteceu com pessoas com história psiquiátrica prévia, mais vulneráveis à ocorrência de reativações e/ou recaídas.


A maioria das vítimas em acompanhamento apresentavam fatores comuns, sendo aquelas que: se encontram em locais mais afetados; onde o acontecimento foi mais severo; onde se registaram mais perdas pessoais e materiais; onde não existiram primeiros socorros psicológicos; onde o incidente ocorreu de forma mais descontrolada. Outra das conclusões sobre a manutenção dos sintomas era o facto das pessoas terem ficado durante muito tempo expostas diariamente às consequências do incêndio (danos no património natural e habitacional).


Atualmente ainda prestamos suporte a algumas das vítimas, mas tudo está mais sereno.


Para o futuro, consideramos fundamental um investimento na prevenção, por via da psicoeducação em diferentes grupos e idades. É igualmente importante a efetivação de um Plano Municipal de Prevenção Psicossocial.

Sandra Tavares, Psicóloga e Coordenadora do Contrato Local de Desenvolvimento Social de Gouveia – Casa do Povo de Vila Nova de Tazem
 

 

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O ritmo da vida, naquele fim-de-semana de outubro de 2017, em Seia, era marcado não apenas pelos sons de um qualquer dia solarengo de outono, mas principalmente pelo fumo que ganhava terreno às nuvens e às copas das árvores. O silêncio ensurdecedor do desconhecido vagueava, por entre a temperatura abafada e o vento que começava a correr por entre cada janela.
 
Subitamente, e sem que o nosso olhar pudesse esperar, uma ocorrência mais longínqua transformou-se em exposições invasoras, não apenas de um território, mas de diversos concelhos vizinhos. É certo que às vezes, as fronteiras são muito rígidas, mas em tempos de enfrentar a fera desembestada e brutal, a força ganha braços, e os braços transformam-se em equipas, com visões complementares, de serviços e estruturas, que no dia-a-dia, são demasiadas vezes burocráticas e enclausuradas, mas felizmente também capazes de fazer, em prol da proteção, recuperação, diversidade e intervenção comunitária, aqui e no que nos diz respeito, ao nível da saúde mental.

Rapidamente o compasso passou a uma velocidade alucinante, com inequívocos alertas, pedidos de ajuda, múltiplas necessidades, circulação sem norte de vítimas, acumuláveis perdas, tentativas de rescaldo, inúmeras incidências, complexos ruídos, muitas ausências - a Catástrofe.
 
A Catástrofe também comanda o tempo, e mesmo depois do impacto, da emergência, do agudo dos acontecimentos, cada um, no melhor de Si e todos em equipa estivemos no terreno, ao lado, com alguém, a pensar nos nossos que não nos conheciam o paradeiro, mas a pensar nos que, por alguma circunstância, ainda não tínhamos conseguido chegar. Contudo, a história não terminou lá, pois ao longo de meses fomos permanecendo nas terras ou à porta dos rostos, a que demos suporte, que acompanhámos ou com os quais nos cruzámos e que por características individuais, pela revitimização provocada por olharapos ou por outros também sofridos ou perdidos, nos passaram a visitar, não por cortesia, nos nossos locais profissionais, mas por recuperação, pós rescaldo e consciência, mas principalmente por trauma e luto.
 
Hoje, quase três anos, dos acontecimentos provocados, neste tempo depois, as memórias de cada um de nós, habitam, ainda que guardadas, mas tal como a semente germina e ganha expressão e se transforma em árvore, temos que continuar a semear e plantar, para conseguir territórios mais saudáveis e protetores, onde a comunicação dissipe burocracias, mas principalmente, nos recorde e faça agir e contribuir para a minimização do impacto e para a capacitação e resiliência de todos, garantindo as suas características individuais.

A partir de ontem, nós, hoje e amanhã somos e seremos ainda melhores - uma rede.    
 
Ana Margarida Jerónimo, Psicóloga Clínica, Município de Seia