RES/RSE

Moçambique/Mozambique
Moçambique: um perfil
Teresa Maria da Cruz e Silva

Apresentação: o País ^

País: Moçambique situa-se na zona austral e na costa oriental de África. Com uma supefície de 799.380 quilómetros quadrados, faz fronteira a norte com a Tanzania, a ocidente com o Malawi, Zambia, Zimbabwe e África do Sul, e a Sul com a Swazilandia e a África do Sul. A sua faixa costeira, na zona este do território, é banhada pelo oceano Indico, numa extensão de 2.515 quilómetros.

População: A população de Moçambique é estimada em 15.7 milhões de habitantes (censo 97), sendo 7.5 milhões de homens e 8.3 milhões de mulheres, com uma média de 20 habitantes por quilómetro quadrado, onde a descrepância é extraordinariamente variável. A situação geográfica e a história deste país, marcada por vários processos migratórios, resultou num grupo populacional heterogéneo com características multiculturais e multiétnicas.

Moçambique tem uma população predominantemente rural, com uma percentagem de 23% dos seus habitantes em áreas urbanas. Maputo, a capital (ex-Lourenço Marques), no sul do país, e a cidade da Beira, no centro do país, têm os mais elevados índices de concentração de população urbana, representando o imenso mosaico cultural que é Moçambique. A língua oficial é o português, embora declarado como língua materna de apenas 5% da população, durante o censo de 1997. Das diversas línguas de origem bantu faladas nos país, as que cobrem um índice mais elevado de populações, enquanto língua materna são: emakua (1/3 da população); xisena,(1/4 da população); xitsonga (1/5 da população) e xitswa (1/8 da população).

Saúde, Educação e economia: Depois da independência (1975), o governo expandiu os cuidados primários de saúde às zonas rurais e introduziu a educação nas componentes fundamentais dos programas de desenvolvimento da sociedade. Entre 1975 e 1982 duplicou o número de ingressos nas escolas primárias e a taxa de analfabetismo foi reduzida em 20%. A guerra destruíu uma parte importante de infraestruturas económicas e sociais, tendo afectado as comunicações dentro do país, o comércio rural, a saúde e a educação. Está em processo, um programa para a reabilitação dessas infraestruturas, com particular atenção para escolas, postos de saúde e vias de comunicação mais importantes para garantir o estabelecimento das ligações entre as diversas províncias e distritos. Em 1997, a taxa bruta de natalidade era de 45.2 por mil habitantes e a taxa bruta de mortalidade era de 18.6 por mil habitantes. A taxa de mortalidade infantil era de 134 por mil nascidos vivos e a esperança de vida à nascença era de 46 anos, sendo de 47.5 para a mulher e 44.5 para os homens. No período de 1992-1997 a taxa global de fecundidade era de 5.8 filhos por mulher (PNUD, 1998).

A economia moçambicana, basicamente agrícola (80%), assenta em grande medida na produção familiar camponesa. A economia socialista havia orientado os investimentos nesta área para as grandes machambas estatais (farms) e a produção e organização dos camponeses em aldeias comunais. A liberalização da economia e o fim da guerra melhoraram a situação da produção alimentar mas não resolveram os constrangimentos que impedem o crescimento e expansão desta actividade, bem como do comércio rural. A indústria manufactureira desenvolvida no país durante o sistema colonial tinha um base frágil. A política socialista tinha como objectivo fazer um investimento na indústria pesada. Com a guerra e o processo de privatização, crescem as taxas de desemprego na indústria manufactureira, em crise. Entre 1995 e 1997 verificou-se um nítido crescimento do Produto Interno Bruto, o qual passou, de 1.3 em 1995, para 6.6 em 1996 e 14.1 em 1997 (PNUD, 1998).

INTRODUÇÃO ^

Moçambique tornou-se independente em 1975, depois de uma luta armada de libertação nacional. A FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique, que havia conduzido a luta durante 10 anos, formou o primeiro governo, com um programa de trabalho orientado para a construção de uma sociedade socialista.

Em 1976 surgiram os primeiros indícios de desestabilização em Moçambique, cujo desenvolvimento atinge a forma de uma guerra civil alargada a todo o país, sobretudo na década de 80, opondo o governo e a RENAMO - Resistência Nacional de Moçambique. A desestabilização provocada por estes conflitos internos é agravada por agressões militares que a Rodésia faz a Moçambique, mais tarde transferidas para o regime de apartheid da África do Sul. Apenas em 1992, com a assinatura do ‘Acordo Geral de Paz’ entre a FRELIMO e a RENAMO, cessam as hostilidades e inicia-se um processo de paz e reconciliação.

A década de 80 marca a transição de uma economia centralmente planificada para uma economia aberta, de mercado. Nos anos 90, concretiza-se a transição política anteriormente iniciada, onde se destaca a introdução de uma constituição pluralista e a emergência de um processo de descentralização política e administrativa.

Com este perfil, pretendemos apresentar um resumo informativo sobre a evolução dos acontecimentos políticos, económicos e sociais em Moçambique, no período pós-independência, e os desenvolvimentos no campo científico, particularmente nas Ciências Sociais, que acompanharam estes processos.

O texto está organizado nos seguintes pontos: i) estratégias de desenvolvimento do país nos campos político, económico e social, ii) produção do conhecimento científico: as ciências sociais, e contém ainda iii) uma lista de referências bibliográficas, sobretudo de trabalhos publicados, mapas e quadros.

1-ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO PAÍS NOS CAMPOS POLÍTICO, ECONÓMICO E SOCIAL ^

Existe hoje uma extensa bibliografia em Português e em Inglês (1) v sobre o assunto que estamos a tratar, utilizando periodizações semelhantes, ou mais ou menos diferenciadas, o que reflecte também diferentes orientações e interpretações dos impactos dos diversos acontecimentos internos ou externos, sobre o desenvolvimento do país. Com este conjunto de informações, cuja análise resulta do trabalho sobre fontes secundárias e não sobre dados empíricos provenientes do nosso trabalho de pesquisa, pretendemos apenas trazer a vosso conhecimento alguns pontos que consideramos importantes para contextualizar o desenvolvimento da pesquisa em Moçambique, no âmbito do projecto ‘Reinventing Social Emancipation: exploring the possibilities of counter-hegemonic globalization’, do qual todos nós fazemos parte. Muito embora o nosso enfoque se concentre num passado mais recente, começaremos a nossa apresentação por introduzir o período colonial, uma forma de introduzir os problemas de transição do colonialismo para a independência.

1.1- O legado colonial ^

Entre a chegada do primeiro navegador português a Moçambique (1498) e o controle efectivo do território e a instalação da administração colonial, decorreu um processo difícil de dominação das diversas organizações políticas africanas que detinham o poder no território. A ocupação efectiva ocorreu em finais do século passado, com a dominação do Estado de Gaza no sul do país, embora apenas na década de 20, a administração colonial tenha passado a assumir um real controle do território.

O desenvolvimento do colonialismo Português em Moçambique, pode ser grosseiramente dividido em três períodos (2) v:

i)1885-1926: com uma economia dominada por grandes plantações exploradas por companhias majestásticas não portuguesas onde se praticava a monocultura de produtos de exportação (sisal, açucar e copra), no centro e norte do país, com base em mão de obra barata. As companhias, por sua vez, também controlavam o mercado da venda de força de trabalho para países como a Rodésia, Malawi (Niassalândia), Tanganhica, Congo Belga e em alguns casos a África do Sul (WUYTS, 1980:12-13). No sul, predominava a exportação de mão de obra para alimentar o capital mineiro da África do Sul. Os acordos assinados entre Portugal e a África do Sul para a exportação da mão-de-obra, traziam rendimentos específicos ao Estado colonial, quer através de impostos, quer da utilização dos caminhos de ferro que ligavam o porto de Lourenço Marques à África do Sul, quer ainda através da utilização do próprio porto, para o trânsito de mercadorias;

ii)1926-1960: sob influência da construção do nacionalismo económico, este período é marcado por uma intensificação do trabalho forçado e integração crescente da economia de Moçambique numa economia regional dominada pela África do Sul. O princípio do trabalho forçado e da introdução de culturas forçadas marcam este período, como uma forma de proteger a burguesia portuguesa, incapaz de concorrer com o capital mineiro e com as plantações, no acesso à mão de obra.

iii)1960-1973: As mudanças políticas mundiais e a crise do regime de Salazar durante este período levaram a diversas reformas políticas e económicas, que conduziram, entre outras medidas, à abolição do trabalho e das culturas forçadas e ao traçar de novas estatégias de desenvolvimento para as colónias. Algumas das consequências das reformas políticas levaram à modernização do capital, com a abertura da ecomonia ao investimento estrangeiro. É neste período e neste contexto de modernização do capital que se fazem investimentos na indústria manufactureira.

A economia colonial sobreviveu durante muitos anos na base de uma dependência de dois sistemas, o trabalho migratório e o trabalho e agricultura coercivos, mesmo depois da abolição formal das culturas e do trabalho forçado. O colonialismo português introduziu mecanismos impeditivos do crescimento de uma burguesia negra, agrícola ou comercial. Assim, embora houvesse uma diferenciação de classe e até mesmo alguns ‘koulaks’ e pequenos comerciantes, o sistema de produção agrícola e industrial manteve-se nas mãos da burguesia portuguesa (FIRST, R., MANGHEZI, A., et al ,1983; CEA,1998; WUYTS, M. & O’LAUGHLIN, B.,1981).

Um olhar sobre a rede de estradas e caminhos de ferro de Moçambique, no período colonial, facilmente nos ajudará a avaliar a orientação destes para uma economia de serviços, que ligava os países do ‘hinterland’ ao exterior, através dos portos moçambicanos. Cerca de metade das divisas de Moçambique eram geradas pelos serviços de transportes e portos para os países vizinhos (3) v

A reacção à dominação colonial havia sido marcada por vários tipos de contestação, através da literatura, arte e greves de trabalhadores, movimentos esses que assumiram aspectos mais radicais com o desenvolvimento dos movimentos nacionalistas em finais da década de 50 e inícios da década de 60. Nos anos 60, a FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique, fundada no exílio, inicia a luta armada de libertação nacional (1964), que só veio a culminar 10 anos depois.

No processo de luta, a FRELIMO criou as ‘zonas libertadas’, áreas no interior do território moçambicano fora do controle da administração portuguesa, funcionando como um ‘Estado dentro de um Estado’, com um sistema próprio de administração. À medida que a guerra avançava, as ‘zonas libertadas’ foram nascendo sucessivamente nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Tete. A sua forma de organização é uma ilustração dos esforços tentativos feitos pela Frente de Libertação de Moçambique para criar uma alternativa à sociedade colonial, com uma economia sem ‘exploração do homem pelo homem’, com formas colectivas de produção e de comercialização e a implantação de bases democráticas (ADAM, 1997: 4). Como diz Yussuf Adam, o modelo idealizado pela FRELIMO, acabou por ser mais uma utopia do que uma realidade, tendo porém, pelo menos até certo ponto, servido de inspiração para traçar o modelo socialista de desenvolvimento implantado em Moçambique depois da independência, onde se pretendia negar quer os modelos de desenvolvimento coloniais, quer os neo-coloniais.

1.2- Transição e consolidação da independência nacional (1974-1977) ^

Com o cessar-fogo e a assinatura dos ‘Acordos de Lusaka’ em Setembro de 1974, sucede-se a criação de um governo de transição, composto por representantes da FRELIMO e do governo português, cuja duração se estende até à independência nacional de Moçambique, a 25 de Junho de 1975.

O hiato provocado pela saída massiva dos portugueses que haviam preenchido a maior parte dos lugares do quadro da administração e do aparelho económico, depois da proclamação da independência nacional, teve que ser preenchido e assumido pela FRELIMO. As mudanças operadas em Moçambique pelo sistema de administração portuguesa em finais do período colonial, não foram suficientemente abrangentes de molde a criarem uma élite negra educada. Na altura da independência, Moçambique tinha uma população com um percentagem de 90% de analfabetos, um número reduzido de técnicos e pessoas com formação superior. No geral, havia poucas pessoas preparadas para preencherem os lugares abruptamente deixados pelos portugueses. É importante registar que o êxodo de portugueses e de alguns indianos neste período entre a transição e o pós-independência, foi acompanhado por uma ‘sabotagem’ da economia de Moçambique, que pode ser caracterizada pelo esvaziamento das contas bancárias, fraudes na importação de mercadorias e exportações ilegais de bens (carros, tractores, maquinaria,etc). Na mesma altura, empresas e bancos portugueses procederam ao repatriamento do activo e dos saldos existentes, criando assim um rombo na economia de Moçambique

Logo após os primeiros anos de independência, a África do Sul iniciou um processo de repatriamento de trabalhadores moçambicanos com contratos nas minas, e o fluxo de recrutamento de trabalhadores sofreu uma redução nos anos seguintes (de 120 000 para 40 000 num só ano) (HERMELE, 1998). Este processo foi acompanhado por um redireccionamento da utilização dos serviços dos portos e caminhos de ferro de Lourenço Marques, pela África do Sul (recorde-se que por altura da independência nacional, mais de 90% dos serviços prestados pelos portos e caminhos de ferro de Moçambique eram direccionados para os países vizinhos). Em 1976,Moçambique adere às sanções das Nações Unidas contra a Rodésia (Zimbabwe) e encerra as suas fronteiras com este país. Recorde-se que a Rodésia era uma importante fonte de captação de divisas para Moçambique, não só através da utilização do porto e dos caminhos de ferro da Beira, para o transporte de mercadorias de trânsito, mas também através do consumo de derivados do petróleo provenientes da refinaria em Maputo, para suprir os problemas de uma economia embargada. O encerramento das fonteiras com a Rodésia, para além das consequências económicas mencionadas, trouxe também um processo de desestabilização a Moçambique (HANLON, 1997), como será referido mais à frente. Com uma economia largamente dependente dos serviços prestados aos países vizinhos, e na sequência do novo tipo de relações agora existentes com a Rodésia e a África do Sul, Moçambique viu assim drasticamente diminuída a entrada de divisas para o país.

As calamidades naturais que afectaram o país entre 1977 e 1978, os efeitos da depressão sobre a economia moçambicana,de base agrícola, agravados pelos aspectos acima mencionados, levaram o país a um declínio económico em espiral .

O novo governo independente, deveria não só organizar o funcionamento da administração mas também garantir a produção e os mecanismos necessários para manter uma economia operacional.Utilizando a sua experiência das zonas libertadas e guiada por um programa de transformação socialista, a FRELIMO traçou as suas estratégias para mudar a estrutura económica e social do país. As mudanças radicais preconizadas pelo novo governo passavam necessariamente pelo exercício de um controle estatal nas zonas rurais e por uma política de intervenção nos sectores económicos e sociais.

Duas das grandes áreas de investimento na área social, foram a saúde e a educação. Na educação, tentando contrariar as políticas coloniais, criam-se condições para a entrada massiva de crianças nas escolas primárias, e priorizaram-se estratégias para diminuir rapidamente os índices de analfabetismo e promover a educação de adultos. Na área da saúde, criaram-se programas de saúde rural, tentando assim estender a rede sanitária a todo o país e previlegiando a medicina preventiva. Uma leitura pelos dados estatísticos sobre as áreas sociais, mostra-nos que em 7 anos o número de ingressos nas escolas primárias duplicou e que no mesmo período, quadriplicou o número de postos sanitários. No seu processo de intervenção, com vista à massificação dos serviços sociais, o Estado procede à nacionalização da saúde, da educação, da habitação e dos serviços de advocacia privada (1975), e mais tarde a outras intervenções no campo económico.

A estratégia económica preconizada pela FRELIMO assentava na transformação social baseada na modernização do campo através da criação de aldeias comunais com facilidade de acesso a infraestuturas sociais como a saúde e educação, aumento da produditividade através de um programa de introdução de uma agricultura mecanizada nas machambas estatatais, uma tentativa para inverter o processo de exploração colonial dos camponeses, e onde o Estado passava a fazer a acumulação. Caberia também às machambas estatais o fornecimento de alimentos às zonas urbanas, antes abastecidas pelos farmeiros portugueses. Esta estratégia foi aprovada pelo 3o. Congresso da FRELIMO, realizado em Maputo, em Fevereiro de 1977, e era conhecida como a ‘estratégia de socialização do campo’. Neste Congresso, a FRELIMO também declarou a sua passagem de Frente para um ‘Partido de Vanguarda Marxista-Leninista’, com a missão de liderar, organizar, orientar e educar as massas, visando destruir as bases do capitalismo e construir uma sociedade socialista.

As estratégias introduzidas pela FRELIMO depois da independência para manter a produção e a economia em andamento, não conseguiram superar de imediato a crise económica que afectava o país:

‘Entre 1974 e 1976, a produção de colheitas para exportação diminuíu em 40%, o milho cultivado pelos camponeses em 20%, a mandioca em 61% e a produção agrícola dos colonos (produtos hortícolas e alimentares para abastecimento das cidades) em 50%. No mesmo período, a produção industrial baixou em 36%’ (NEWITT, 1997: 473; WUYTS, 1985: 186).

Os mesmos factores contribuíram ainda para a criação de dívidas de importação. Assim, os trabalhadores desempregados do sector agrícola e das minas sulafricanas iniciaram um processo de migração para as cidades. Numa tentativa de controle da crise, o governo criou a Comissão Nacional de Abastecimentos. Nesse processo, foi introduzido um sistema de controle de preços e um cartão de racionamento, o ‘cartão de abastecimento’, por cada agregado familiar.

‘A estratégia de desenvolvimento permitiu um total monopólio pelo poder do estado, e a sua hegemonia sobre todas as forças económicas e políticas’ (ADAM, 1997: 5-6).

1.3- A construção do socialismo (1977-1983/4) ^

Com a criação do Partido Marxista-Leninista, em 1977, criaram-se também os ‘movimentos democráticos de massas’ para enquadrar os trabalhadores, as mulheres, a juventude, organizações criadas ‘de cima para baixo’ sob a tutela e orientação do Partido. Durante este período, Moçambique estabelece relações com os países do Leste europeu, de quem recebe inicialmente uma ajuda no campo militar. Recorde-se que os primeiros indícios de conflitos armados haviam surgido em 1976.

A adesão de Moçambique ao processo de sanções contra a Rodésia e o encerramento das fronteiras entre os dois países, abriu o caminho para uma história de hostilidades que havia de durar até aos anos 90. O apoio dado por Moçambique aos guerrilheiros e refugiados zimbabweanos, agravou ainda mais as relações entre os dois países. As incursões militares perpetradas pelo regime de Ian Smith ao interior de Moçambique, foram agravados pelo apoio dado à criação e desenvolvimento de um movimento de oposição à FRELIMO, a RENAMO. Com a independência do Zimbabwe, em 1980, a base de apoio deste movimento foi transferida para a África do Sul, que por sua vez também realizou incursões militares ao interior de Moçambique e criou um clima permanente de instabilidade. A África do Sul tinha como objectivos retaliar a FRELIMO pelo apoio dado ao ANC (Congresso Nacional Africano), através da destruição das infraestruturas e da sua economia, por forma a obrigar a FRELIMO a sentar-se a uma mesa de negociações. Com o apoio militar sulafricano, a RENAMO aumentou o seu exército, de menos de 1000 efectivos em 1980, para 8000 efectivos em 1982 (Human Rights Watch, 1994: 8). Com zonas de combate em Manica e Sofala, rapidamente as suas operações militares se expandiram por todo o país. Em 1982, a guerra tinha-se alastrado às províncias do sul, Gaza e Inhambane, e à Zambézia.

Como diz Hanlon (1997), desde os anos 60, quando a FRELIMO iniciou a guerra, pairava sobre ela a nuvem da guerra fria, com os Estados Unidos e a NATO ao lado de Portugal, o que levou este movimento a aliar-se à União Soviética e à China. Nos anos 70, o abrandamento da guerra fria trouxe novas esperanças à África Austral, e o debate sobre a Nova Ordem Internacional havia mesmo criado ao ‘terceiro mundo’ a esperança de acesso ao ‘financiamento internacional para os seus programas de modernização’(4) v. Em Moçambique, o novo governo tentava introduzir uma política de desenvolvimento socialista. Depois da independência do Zimbabwe em 1980, os regimes de maioria formaram a SADCC (hoje SADC), Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral. Logo a seguir, com Reagan nos Estados Unidos e Tacher na Grã-Bretanha, há um ‘volt-face’, e a guerra fria explode de novo, com consequências no Afeganistão, Camboja, El Salvador, Angola e Moçambique (NEWITT, 1997). O governo de Moçambique foi rotulado como comunista, e entrou na ‘lista negra’ dos Estados Unidos da América, que em consequência disso apoiou indirectamente e encorajou a guerra de desestabilização contra Moçambique, através da África do Sul. A guerra que durou até aos anos 90 teve prejuízos inestimáveis (HANLON, 1997: 14.):

  • a guerra atingiu principalmente as zonas rurais, onde foram destruídas escolas e hospitais, raptados alunos e professores, destruídas infraestruturas económicas, como pontes, estradas, cantinas e tractores;

  • das 5886 escolas do ensino primário do primeiro grau, 3498 (60%) foram encerradas ou destruídas; na Zambézia, só 12% continuaram a funcionar até ao fim da guerra;

 

  • do número de postos de saúde de nível primário, que entre 1975 e 1985, havia passado de 326 para 1195, cerca de 500 foram encerrados ou destruídos pela RENAMO;

  • mais de 3000 cantinas rurais foram encerradas ou destruídas;

  • estima-se que cerca de 1 milhão de pessoas tenha morrido, 1,7 millhões se tenha refugiado nos países vizinhos e pelo menos 3 milhões estivessem deslocadas das suas zonas de origem;

 

A componente externa de apoio a esta guerra, se bem que não possa ser ignorada, reflecte apenas uma parte das razões que levaram à sua manutenção. É também necessário tomar em linha de conta os problemas internos do país e as políticas e estratégias utilizadas pela FRELIMO como resposta à crise existente, que marcaram um distanciamento entre o governo e a população, criando um descontentamento que ajudou a alimentar o conflito armado.

A reestruturação radical da economia, através do modelo de economia centralmente planificada pelo Estado, estava longe de solucionar os problemas advenientes da tentativa de suprir a crise económica resultante da destruição da economia colonial (5) v e mostrou ser a menos adequada para a solução dos problemas económicos e sociais existentes no país. As medidas económicas preconizadas pelo Estado, tinham marginalizado os camponeses familiares a favor do desenvolvimento de uma agricultura mecanizada, destruindo assim o sistema que havia garantido a maior parte da produção para consumo interno e uma parte da produção para exportação deste país. Era pois necessário repensar a estratégia e avaliar o papel a desempenhar pelo Estado na gestão da economia (ADAM, 1997: 6-7).

A guerra, a seca e as calamidades naturais alargaram o âmbito das pressões internas para alteração das políticas da FRELIMO. A situação económica e social sofriam uma degradação crescentes. Em algumas províncias era já visível o espectro da fome e era necessário mobilizar recursos para o pagamento da dívida externa (6) v. As medidas de emergência para tentar suster a economia não poderiam ser permanentes. Era difícil manter os níveis de emprego na indústria com baixos níveis de rendimento ou subsidiar a improdutividade das machambas estatais e manter também os subsídios para a alimentação das populações urbanas ou para as áreas sociais como a saúde, a habitação e a educação, que acabaram por conduzir a uma deterioração destes serviços. Entrara-se já numa fase de ruptura do mercado, com uma hegemonia do mercado negro e uma consequente baixa cambial. Nos princípios da década de 80, a situação económica do país transportava já sinais alarmantes:

  1. crescimento do nível de importações sem que houvesse disponibilidade de divisas;
  2. os subsídios estatais à educação, saúde e despesas correntes do sector estatal incluindo as empresas estatais levaram a um déficit no orçamento do Estado. Isto resultou no endividamento público interno e externo;
  3. depois de 1984, Moçambique entra na fase da crise da dívida e perde a credibilidade ‘creditícia’ junto dos mercados internacionais (PNUD, 1998: 51).

O decréscimo dos níveis de produção não podia de modo algum compatibilizar-se com o nível de crescimento das populações, pelo que foi necessário fazer uma contracção dos consumos, com impactos na redução da produção do bem-estar das populações e a consequente deterioração dos seus níveis de vida. A estratégia socialista apresentava sinais evidentes de desmoronamento. Em contrapartida, as conversações para adesão ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) avançavam progressivamente no cenário sócio-económico local , o que veio a resultar no lançamento das reformas económicas. Em meados da década de 80, são visíveis os esforços da FRELIMO no campo político e económico, para alterar as consequências negativas resultantes da estratégia de desenvolvimento utilizada anteriormente.

1.4 A abertura da economia e para uma transição política (1984-1992) ^

As pressões políticas no campo interno e externo e a necessidade de receber ajuda alimentar para superar a crise económica e as consequências da guerra e das calamidades naturais levaram a FRELIMO a redifinir a sua política externa: i) em 1982 o governo ‘começou a cortejar os Estados Unidos e a fazer a sua "viragem para o Ocidente" (HANLON, 1997: 15); ii) em 1984, assinou o ‘Acordo de Nkomati’ com a África do Sul, uma tentativa de cortar os apoios da África do Sul à RENAMO. Com este acordo, criaram-se também alguns espaços para negociações sobre a mão de obra moçambicana, e sobre o fornecimento da energia eléctrica de Cabora-Bassa para a África do Sul.

Depois de uma fase de economia centralmente planificada, em 1985 dão-se os primeiros passos para a sua liberalização, o que leva a uma transição. Visando reverter as tendências negativas do crescimento económico através de um reajustamento estrutural, em 1987 é introduzido o Programa de Reabilitaçao Económica (PRE) e em 1990 o Programa de Reabilitação Económica e Social (PRES). O programa de ajustamento estrutural, é um pacote que envolve o livre comércio, a desregulamentação e a privatização. O governo liberalizou os preços, praticamente terminou a sua gestão do mercado, cortou o seu orçamento nos sectores sociais, e introduziu mudanças nas políticas da saúde e da educação, onde foi estabelecido um sistema que atribui acesso com base no rendimento. As reformas económicas introduzidas em Moçambique, nas duas últimas décadas levaram a uma revitalização da economia, o que não pode ser mecanicamente traduzido por uma redução da pobreza. ‘A pobreza, entendida como ausência das condições para uma vida longa, instrução e um padrão de vida aceitável, afecta a maioria esmagadora da população de Moçambique’ (PNUD, 1996: 81). Organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional classificaram este país na posição dos mais pobres do mundo.

1.5- Reconstruindo uma nova sociedade (1992-1999) ^

Em 1990 a FRELIMO introduziu uma nova constituição que permitia eleições multipartidárias, a liberdade de imprensa e o direito à greve. Desde 1987 que se faziam esforços para estabelecer conversações entre a FRELIMO e a RENAMO. Em Julho de 1990 o governo e a RENAMO deram início às conversações em Roma e em Outubro de 1992, também em Roma, Joaquim Chissano e Afonso Dlakama assinaram o Acordo de Paz. O processo de cessar fogo, a desmobilização e o repatriamento decorreram sem incidentes de maior, e em Outubro de 1994, realizavam-se as primeiras eleições multiparditárias (presidenciais) em Moçambique. Em 1998 realizaram-se as primeiras eleições para os órgãos locais, estando também em preparação as segundas eleições presidenciais, calendarizadas para 1999.

O processo de transição política já embrionário na década de 80, tem a sua concretização nos anos 90. As crises económicas sucessivas e os processos de transição que marcaram Moçambique entre 1974/75 e 1999 têm custos sociais, que se reflectem na qualidade de vida das populações. A necessidade de contrair os níveis de consumo para os adaptar à realidade económica do país e a incapacidade e impossibilidade do Estado para prover o bem estar social impede que se crie um sistema para a minimização dos efeitos sociais negativos das reformas económicas, elevando os níveis de pobreza e o crescimento da exclusão, da reivindicação e da violência.

 

2- PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO: AS CIÊNCIAS SOCIAIS ^

A produção científica na área das Ciências Sociais tem um papel fulcral a desempenhar no diagnóstico e interpretação dos diversos processos sociais. No entanto, ela não deixa de estar permeável ao meio ambiente em que se insere, ficando assim exposta a manipulações que podem servir os interesses dos poderes políticos. Com um enfoque no período pós-independência, na nossa breve análise tentaremos ilustrar essa interpenetração entre produção científica e o meio em que os seus produtores se inserem.

Nas colónias portuguesas, o desenvolvimento das Ciências Sociais, moldado para legitimar o sistema político vigente, transformara o Estado colonial no sujeito da história e as populações africanas no seu objecto. Em Moçambique, a maior parte dos estudos produzidos durante este período, consistiam em descrições etnográficas, estatísticas, estudos sobre questões da diplomacia portuguesa, monografias, leis e instituições coloniais, visando legitimar e dar visibilidade à presença portuguesa em Moçambique. O sistema de educação fora estruturado para reforçar a ideologia do regime, e os paliativos introduzidos com as reformas tentavam contornar a possibilidade de produzir uma élite educada que viesse a constituir uma oposição política e um grupo forte de intelectuais.

Os estudos universitários foram apenas introduzidos nos anos 60, com a criação de uma escola superior. Os cursos de Ciências Sociais e Humanas, estavam restringidos apenas a algumas disciplinas, onde não havia lugar para estudos relativos à Sociologia, à Antropologia e às Ciências Políticas. A táctica de ‘dividir para reinar’ que tão bem caracterizou vários processos de colonização no mundo, foi também aplicada pelo governo colonial no direccionamento da produção intelectual em Ciências Sociais, como o atestam as formas como o regime manipulou a produção científica nos campos da História e da Antropologia.

A independência de Moçambique, em 1975, trouxe consigo novos desafios nos campos político, social e económico, e a necessidade de reconstruir e dar uma nova direcção à produção científica na área das Ciências Sociais. Apesar do reduzido número de pessoas com formação superior existente nessa época, uma jovem geração de intelectuais moçambicanos estabeleceu a ruptura com os moldes de produção científica vigentes, e trouxe uma nova abordagem à produção científica e consequentemente aos programas e métodos de ensino neste mesmo campo. Neste processo, jogou um papel vital o Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, particularmente no domínio da pesquisa, onde as práticas de campo e a necessidade de combinar o trabalho empírico e o teórico foram valorizadas, e a Faculdade de Letras da mesma universidade, que através de debates, reformas curriculares e produção científica, trouxe também novas contribuições. Mesmo assim, era ainda muito fraca a quantidade de cientistas sociais e a produção científica estava ainda muito longe de responder às necessidades reais de então.

O impacto do capitalismo colonial e a sua relação com a economia sulafricana e o paradigma dos movimentos de libertação dominaram as temáticas da maior parte das pesquisas realizadas durante este período (JOSÉ, 1989), uma ilustração dos esforços feitos na época para a ‘recuperação’ da história de Moçambique e da interpretação dos diversos processos de luta que haviam ocorrido, envoltos em novas análises.

Do período da produção socialista à economia de mercado e ao processo de paz e reconstrução, a produção em Ciências Sociais no período pós-independência em Moçambique, mostra-nos uma marcada influência dos diversos desafios, processos de transição e reformas que num período tão curto abrangeram Moçambique. Assim, o processo relativo à implantação de uma economia e uma sociedade socialista, o impacto da guerra, o processo de paz e a construção de uma sociedade democrática, marcam a produção científica em Moçambique. Não se pode de modo algum ignorar o contexto regional, onde a dominação económica sulafricana, o regime do apartheid e a nova África Austral pós-apartheid fazem também parte dos interesses dos cientistas sociais deste período.

No processo das transições políticas porque Moçambique passou desde a independência, diferentes disciplinas e áreas de trabalho foram recuperadas, de acordo com necessidades específicas, justificações sociais e jogos e interesses do poder. A título de exemplo poderemos mencionar o caso da Antropologia, que foi severamente rejeitada por alguns intelectuais, logo após a independência nacional, pela sua relação com a legitimação do poder colonial, e a produção paternalística sobre a história dos povos africanos, seus ‘usos e costumes’, que agora está num processo de ‘recuperação’ e num nítido processo de manipulação pelo poder para justificar a necessidade política de ‘reafricanização’ e da integração das ‘autoridades tradicionais’ e ‘poder tradicional’ em Moçambique. Mais recentemente, passaram também a desempenhar um papel de destaque os estudos sobre religião e sociedade e sobre mulher e género, que em muitos casos são também utilizados para servir os interesses das classes no poder e também para atrair doadores. Muitos outros exemplos poderiam ainda ser aqui apresentados para ilustrar a influência e o impacto que os desenvolvimentos políticos sociais e económicos podem ter na produção científica. A falta de recursos financeiros, a dependência em relação aos doadores e a ‘burocratização’ da investigação, gerida de uma forma administrativa e onde a consultoria e pesquisa muitas vezes não se destrinçam (REIS, 1997), fazem também parte dos nós de estrangulamento para uma efectiva produção científica.

A necessidade de alargar o âmbito de pesquisa levou à criação, nas duas últmas décadas, de vários centros de investigação multidisciplinares especializados, como são os casos do Centro de Estudos Estratégicos do Instituto Superior de Relações Internacionais, o Centro de Estudos de População e o Núcleo de Estudos da Terra, ambos na Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Fora das instituições de ensino superior, é importante mencionar o caso do ARPAC-Arquivo do Património Cultural, ligado ao Ministério da Cultura, que reunindo um corpo de investigadores, entre antropólogos, sociólogos, historiadores e musicólogos, faz um trabalho de levantamento e análise na área de Ciências Sociais, e promove novas publicações.

Depois da independência nacional, Moçambique tinha apenas uma Universidade. Hoje, tem uma universidade pública e dois institutos superiores, para a formação de pessoal docente e na área de relações internacionais, contando ainda com 3 escolas superiores privadas, onde se leccionam alguns cursos de formação na área de Ciências Sociais. Depois do encerramento dos cursos de Letras (História, Geografia e Linguística) e de Ciências da Educação, em 1979 (por um período de quase cinco anos), e mais tarde o curso de Direito, por razões que se prendem com as estratégias políticas da época, em finais da década de 80 e inícios da década de 90, cria-se uma nova abertura para o repensar da importância das Ciências Sociais no país. Abre-se a formação em Ciências Sociais, com a UFICS-Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais, com ramificações para a Sociologia, Antropologia e Administração Pública. É importante referir o facto das instituições do ensino superior terem iniciado, também nas duas últimas décadas um grande investimento na formação do seu corpo docente e os esforços que se realizam para promover práticas de investigação.

No campo das publicações está talvez uma das maiores fragilidades, uma vez que as nacionais não são difundidas, e vivem permanentemente entre a falta de fundos, de pessoal qualificado para realizar a gestão da sua produção, e muitas vezes até de um desinteresse da parte de investigadores moçambicanos em publicar em revistas moçambicanas. Assim, é por vezes mais fácil encontrar artigos e até livros sobre Moçambique e elaborados por autores moçambicanos em revistas e editoras no estrangeiro do que no país. Devemos no entanto destacar duas revistas, que apesar de enfrentarem algumas dificuldades vão conseguindo manter um perfil de qualidade e reconhecimento internacional: i) Arquivo uma revista de História e Ciências Sociais, editada pelo Arquivo Histórico de Moçambique, e ii) Estudos Moçambicanos, uma revista de Ciências Sociais, editada pelo Centro de Estudos Africanos, ambas da Universidade Eduardo Mondlane.


NOTAS ^

(1) ^ Veja alguns exemplos na bibiografia anexa a este texto.
(2) ^ Baseado no trabalho de Marc Wuyts: ‘Economia política do colonialismo em Moçambique’, Estudos Moçambicanos (1), 1980, pp.9-22.
(3) ^ Por alturas da independência nacional (1975), cerca de 90% dos serviços prestados pelos portos de Moçambique, eram dirigidos aos países vizinhos. Veja: HERMELE, K, 1988)
(4) ^ ABRAHAMSSON & NILSSON, citados por HANLON (1997), p.11.
(5) ^ Em 1974, a economia já tinha sido afectada pelo aumento do preço do petróleo e outros bens manufacturados, a níve mundial.
(6) ^ 1982 foi o último ano em que Moçambique esteve capaz de pagar a dívida. ADAM, Y (1997), p.8.


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