704 - Maria da Conceição Cano
Trajetórias e re-significação do património cultural: a cultura material do bumba-meu-boi
Maria da Conceição Salazar Cano
Doutoramento “Patrimónios de Influência Portuguesa” (CES/III)
Resumo:
O presente trabalho busca analisar a trajetória da cultura material do bumba-meu-boi1 – manifestação cultural vinculada ao catolicismo popular e às camadas marginalizadas da sociedade brasileira que apresenta tanto um caráter religioso e ritualístico quanto uma forma de diversão e entretenimento, envolvendo performance, ritual, dramatização, música, dança, poesia e a cultura material produzida para estes fins. Com base nas proposições de Arjun Appadurai e Igor Kopytoff sobre a “vida social das coisas”, pretendo compreender os usos e significados que são atribuídos aos objetos rituais do bumba-meu-boi, nomeadamente as máscaras, indumentárias e o ‘couro do boi’, nos distintos contextos de produção, apropriação e circulação. Considerando que o Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) legitimou o bumba-meu-boi do Maranhão como património cultural do Brasil com base no decreto nº 3.551/2000 que institui o registo de bens culturais de natureza imaterial, busco discutir as implicações deste processo de patrimonialização na produção, circulação e re-significação dessa cultura material. Assim, através da análise da trajetória daqueles objetos rituais, o presente estudo contribuirá para uma maior compreensão sobre o uso da cultura popular perante os processos de apropriações eruditas, sua re-significação e contextualização em diferentes espaços e sua transformação em símbolo identitário.
Palavras-chave: Bumba-meu-boi, cultura material, património cultural.
No interior do quadro da dimensão festiva e ritualística do bumba-meu-boi, o enfoque será colocado nos objetos rituais, os quais constituem um meio de expressar a dimensão religiosa e as dinâmicas de afirmação de identidade. Assim, atendendo a certa carência de estudos acerca da cultura material do bumba-meu-boi – com exceção de alguns trabalhos desenvolvidos sobre a máscara do personagem Cazumba –, proponho analisar o ‘couro do boi’, as indumentárias e máscaras dos diversos personagens desde a sua produção, circulação e re-significação em distintos contextos. O ‘couro do boi’ é considerado o elemento mais importante da festa por sintetizar a performance ritualística e apresentar os principais símbolos identitários do bumba-meu-boi. Usado para cobrir o boi – artefato construído em madeira leve, animado por um individuo chamado ‘miolo’ que esconde-se em baixo desta armação –, é revestido por um tecido de veludo bordado com lantejoulas, canutilhos, missangas e pedrarias de cores variadas, cujos motivos envolvem imagens de santos, principalmente São João, outras simbologias do universo do catolicismo popular, referências a mitos e lendas, personagens da história nacional, elementos representativos da identidade regional e nacional, espécies da fauna e flora nativas; ao final deste ‘couro’ é acrescida uma barra de tecido para ocultar o ‘miolo’. As indumentárias abarcam saiotes, golas, bermudas, coletes e chapéus bordados com fitas, canutilhos, missangas, lantejoulas e pedrarias; já as vestimentas dos indígenas que envolvem saiote, cocar, braçadeiras e caneleiras, são produzidas com penas e plumas coloridas. Os motivos se repetem com elementos da flora e fauna nativos, signos religiosos e caracteres identitários. Quanto às máscaras apresentam elevada variedade e podem ser feitas de borracha, tecido, madeira, papelão, com formas animalescas ou fantasmagóricas, adornadas por cabeleiras, orelhas e outros elementos para deixá-las assustadoras.
A análise da produção e circulação desses objetos irá se basear na “abordagem biográfica” de Kopytoff (2008) e na perspetiva da “vida social das coisas” de Appadurai (2008) para compreender a importância ritual, as trajetórias e “fases de vida” dessa cultura material e perceber qual seu destino após o encerramento do ciclo festivo e a mudança de seus usos e significados nas diferentes conjunturas. Os espaços de produção serão analisados com base na abordagem de Richard Sennett (2010) que auxiliará a observação das relações de autoridade e da transmissão do conhecimento, habilidades e ofício estabelecidos no processo de produção. Considerando a inserção de figurinistas e designers nessa produção busco compreender como se estabelece a interação e colaborações entre estes e os artesãos, costureiros e bordadores. Ainda, pretendo perceber de que modo a inventividade, as misturas e o sincretismo são aceites nesta criação e se estes objetos refletem ou não a dialética entre ‘tradição’ e espetacularização, uma vez que alguns grupos tendem a ser mais ‘tradicionais’ e resistir à espetacularização enquanto outros parecem atender às demandas do espetáculo e do turismo. Dessarte, tendo em conta o caráter periférico dos objetos, empregados como “mera representação simbólica” para enquadrar a performance (Miller, 2010:156), busco compreender seus usos na afirmação da identidade dos grupos de bumba-meu-boi.
Na pesquisa será dado também especial ênfase à análise de espaços museológicos que exibem os objetos rituais do bumba-meu-boi, de acordo com as reflexões de James Clifford (2008) acerca das apropriações museológicas, que procede a uma análise do museu como zona de contato ampliando o conceito de Mary Louise Pratt2 para abarcar relações culturais de uma mesma região marcadas por distâncias sociais, apropriações e negociações políticas. Considerando os museus como estruturas organizativas que possibilitam o encontro e a passagem de pessoas, objetos, mercadorias e verbas mediados por relações de poder que visam atender a interesses políticos e afirmar uma identidade através das tradições populares (Clifford, 2008), procuro analisar essas mediações de poder e os sujeitos envolvidos neste contexto, compreender os propósitos de algumas das exposições de objetos rituais do bumba-meu-boi e qual identidade querem afirmar. Tendo em conta que 400 peças foram identificadas em acervos nacionais, busco perceber – através de alguns casos selecionados no Maranhão e Rio de Janeiro – se ocorre uma contextualização desses objetos no âmbito das exposições de acordo com as leituras e acontecimentos atuais, quais significados são atribuídos a estes objetos e até que ponto os museus estabelecem um diálogo com os artesãos. Desse modo, acompanhando a trajetória dos objetos rituais do bumba-meu-boi nos espaços de produção, no ritual festivo, nos museus, exposições e feiras ou locais de comercialização será possível perceber as diversas redes que se estabelecem, as relações de poder existentes, os encontros/confrontos entre a cultura popular e a erudita, bem como compreender os usos e a re-significação dos objetos rituais neste processo.
Referências bibliográficas:
Appadurai, Arjun (2008) “Introdução: mercadorias e a política de valor”, in Arjun Appadurai (org.), A vida social das coisas: mercadorias sob uma perspetiva cultural. Rio de Janeiro: EDUFF,15-88
Cavalcanti, Maria Laura (2006) “Temas e variantes do mito: sobre a morte e a ressurreição do boi”, Mana,12(1),69-104
Clifford, James (2008) Itinerarios transculturales. Barcelona: Gedisa
IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2011) Complexo cultural do bumba-meu-boi do Maranhão: dossiê do registro como Patrimônio Cultural do Brasil. São Luís: IPHAN
Kopytoff, Igor (2008) “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo” in Arjun Appadurai (org.) A vida social das coisas: mercadorias sob uma perspectiva cultural. Rio de Janeiro: EDUFF,89-121
Miller, Daniel (2010) Stuff. Cambridge: Polity
Pratt, Mary Louise (1999) Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC
Sennet, Richard (2010) El artesano. Barcelona: Anagrama
1 O bumba-meu-boi supostamente surgiu no século XVIII nos engenhos de açúcar, nas fazendas gado e no litoral do nordeste brasileiro. Até meados do século XX enfrentou preconceito social e repressão policial, limitando-se às zonas periféricas. Entretanto, ganha visibilidade no contexto nacional a partir dos estudos folcloristas realizados em 1950 de “aspiração nacionalista” que buscavam “na cultura popular um modelo de autenticidade orientado por uma visão romântica e harmônica da vida social” (Cavalcanti, 2006:70-71). Assim, de manifestação reprimida ligada a grupos marginalizados o bumba-meu-boi passa a ser visto como símbolo da cultura nacional e, em 2011, é legitimado pelo IPHAN como património cultural do Brasil.
2 Segundo Mary Louise Pratt (1999:27), “zonas de contato” são “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”. Nas reflexões de Pratt, “zona de contato” relaciona-se à fronteira colonial expansionista europeia, na qual ocorre uma “tentativa de se invocar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas” e passam a se cruzar através de interações e improvisos gerados nos “encontros coloniais” (ibid.:32).